Igor Stravinsky gravou a peça que lhe deu notoriedade duas vezes, com andamentos completamente diferentes. Pierre Monteux, que regeu a tumultuada estréia em Paris (1913) também fez duas gravações inconsistentes. O compositor desprezava os intérpretes modernos, descartando Karajan e Boulez por abuso pessoal; ao que parece, nenhuma versão podia satisfazê-lo. A partitura um sí é contraditória: por um lado, possuía as marcações matematicamente precisas de Stravinsky e, pelo outro, a bucólica selvageria da dança sagrada, uma metáfora da inata falta de regras da Mãe Rússia. Esta não é uma peça que possa ser interpretada com total segurança. A menos que pareça perigosa, a execução naufraga. Em disco, Bernstein e Rattle, ainda muito joven (com a Orquestra Jovem da Grã-Bretanha) chegam o mais perto possível da selvageria exigida. Numa noite de verão, em Rotterdam, eu ví uma dupla de pianistas ensaiando uma versão para dois pianos, sacudindo os nervos e as janelas da cidade. Quando terminaram, Valery Gergiev encontrou um piano de ensaio nos bastidores e tocou a peça novamente em particular, com uma frieza ameaçadora. A fúria das danças foi mantida em xeque até perto do final, e a ameaça de violência soou mais terrível do que a de um verdadeiro banho de sangue. Esta supressão do desejo parecia atingir o coração da dicotomia stravinskiana.
Eu fiquei até as quatro horas da madrugada caminhando ao lado de Gergiev pelas ruas de Rotterdam, discutindo os méritos relativos de Stravinsky e Prokofiev (que ele preferia). De origem caucasiana, criado dentro da fechada aristocracia soviética (seu tio foi o projetista de tanques preferido de Stalin), Gergiev não teve acesso algum ao ao mundo mental do ocidentalizado Stravinsky, que teve babás francesas, e também não nutria nenhuma simpatia por esses luxos. Sua visão da Sagração era intuitiva, ele sabia de onde ela brotava: dos sarcásticos rituais de rivalidade tribal que criaram seu país. Esses rituais estão no coração da Sagração, selvagens e circunspectos; pertencem a uma civilização que precede a civilização. Este é o habitat de Gergiev, e ele reina nele como um leão. Nada é respeitado nesta interpretação, a não ser a deferência devida a um conquistador. O fraseado - tão complicado que muitos maestros reescrevem a partitura sem barras de compasso - é tratado com maestria casual. A Orquestra de Kirov toca como se os músicos estivessem possessos. Nunca houve uma sagração como essa.
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Um comentário:
Já acompanho seu blog há algum tempo e ele é ótimo. Tem sempre novidades para mim. Muito obrigada.
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