quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Debussy: Prelúdios - Pascal Rogé - Onyx - La-Chaux-de-Fonds, Suíça

Em meio ao colapso da indústria da gravação clássica, dois executivos discutiam sobre seu incerto futuro. Paul Moseley, homem de marketing da Decca, encontrava-se com Chris Craker, produtor de cerca de 400 discos, cujo pequeno selo, Black Box, tinha sido arrematado por uma grande empresa. E o que seria dos artistas? E todas aquelas estrelas em ascenção que foram amplamente promovidas pelos grandes selos e estavam agora, no meio da vida, jogadas num monte de sucata? Certamente um nome famoso deveria ter importância de alguma forma na nova economia.
Para seu empreendimento, chamado Onyx, Cracker e Moseley gravaram Victoria Mullova (ex-Philips), Barbara Bonney (ex-DG) e o quarteto Borodin (ex-EMI) em música que eles nunca tinham tocado antes. Mullova atacou Vivaldi com os cabelos esvoaçando sobre os rostos de uma selvagem orquestra com instrumentos de época. Bonney cantou Bernstein. O Borodin gravou um recital em comemoração ao seu sexagésimo aniversário. Mas a grande cartada foi Pascal Rogé, que, dispensado pela Decca, gravou os prelúdios de Debussy, que lhe haviam ocupado a mente desde os oito anos. Rogé era o arquetípico mestre de escola francesa, herdeiro da elegância de Cortot e da sutileza de Casadesus. Estilo foi o elemento de importância em seus prelúdios. Um fio de cabelo fora do lugar, um vestígio de sabor errado, e todo o efeito poderia ser arruinado. Cada prelúdio era um prato distinto, quente ou frio, sombrio ou "bien amusant".
Aliviado da expectativa de grandes vendas, Rogé tocou como quis, focado no texto e subtexto de um conjunto de peças que raramente é tocado na íntegra. Os Prelúdios, disse ele, foram escritos para o executante: "Não consigo imaginar o que um ouvinte pode desfrutar, comparado com o prazer voluptuoso de criar todos esses sons, perfumes, cores. Algumas vezes sinto-me culpado por experimentar todos esses prazeres em público. É quase indecente".
Do andamento "lento e grave" das danças délficas ao toque "animado" do vento nas planícies, o pianista preocupa-se apenas com a imagem e o estado de espírito. A "calma profunda" de uma catedral submersa é trazida de maneira extraordinária à mente; a homenagem satírica a Samuel Pickwick é tocada impassivelmente e, por isso mesmo, fica duas vezes mais cômica.
Este foi, por várias razões, um marco na história da gravação clássica, com o mérito musical de ter sido um indicador de como deveria ser a transmissão da música na era pós-gravação - um modelo para projetos modestos de grandes artistas, uma fina, porém resistente, corrente de continuidade. Antes que o disco fosse lançado, Chris Craker conseguiu um alto posto na Sony-BMG e o selo Onyx entrou para o sistema de distribuição das grandes gravadoras. Foi um vislumbre, ou, mais possivelmente, uma quimera de um novo começo.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Purcell:Dido e Enéas - Le concert d'astrée - Emmanuelle Haim - EMI / Virgin - Metz, Março de 2003.

A indústria fonográfica recusou-se a reconhecer as mulheres regentes. Poucas delas gravaram um ou dois discos, mas nenhuma teve contrato de gravação. Não parecia ter havido qualquer mudança sob esse aspecto no momento em que a indústria iniciava sua queda livre. Mas, do nada, surgiram duas mulheres, de formações diferentes, que quebraram os moldes antigos. Marin Aslop, uma aluna de Leonard Bernstein, gravou uma enxurrada de música americana para o selo Naxos. O sucesso foi tamanho que ela ganhou um ciclo de Brahms. Emmanuelle Haim, tecladista francesa, se encarregou de "Rodelinda", de Handel, em Glyndebourne, ganhando um contrato com a EMI Virgin.
Como cravista de William Christie, Haim havia chamado a atenção de Simon Rattle e Abbado. Ela formou seu próprio conjunto - o Concert d'Astrée e logo foi procurada como regente convidada por orquestras do primeiro time. Sem ficar refém de nenhuma doutrina "de época", ela escalou o elenco para a obra-prima de Purcell com grandes vozes - Susan Graham e Ian Bostridge - e convenceu o mestre do coro de Rattle em Berlim, Simon Halsey, a dirigir seu grupo vocal, usando instrumentos de época no fosso e com ela própria regendo, ao cravo.
Apesar do risco de dar espaço à exuberância dos grandes nomes, a execução, arrebatada e liricamente pura, foi uma colaboração entre iguais. Graham soa completamente à vontade no barroco e Bostridge irradia preciosidade através de sua virilidade muscular. Não há carência de competição de divas em disco, de Janet Baker, Maria Erwing, Jessie (acredite se quiser) Norman, Emma Kirkby e Kirsten Flagstad, mas nesta versão Graham é a primeira entre iguais, e esta é a sua maior virtude. A emoção do momento em que Dido está "deitada na terra" é avassaladora, por ser puramente aural, pois sua morte não é vista. Seria a última ocasião em que uma ópera gravada triunfaria sobre todas as encenações.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

igeti - Atmosferes, Aventures (música do filme 2001: Uma Odisséia no Espaço) Orquestra Filarmônica de Berlim - Jonathan Nott - Teldec - Berlim

O modernista húngaro György Ligeti ficou surpreso ao saber que sua música tinha encontrado uma audiência global na fantasia espacial de Stanley Kubrick. Ele foi assistir ao filme e ficou injuriado, com toda a justiça. Não apenas "Atmosfera" e outras peças haviam sido usadas sem sua permissão, mas também uma parte de "Aventuras" distorcida eletrônicamente. Ele abriu um processo, foi derrotado por Hollywood, e aconselhado por seus editores a aceitar um acordo no valor de 3.500 dólares - "uma quantia desprezível". Mais tarde disse: "Gostei do filme. Artísticamente, eu aceito a maneira como usaram minha música". Esta não é uma trilha qualquer, pois Kubrick alterara completamente a maneira como a música era aplicada no cinema - não mais como um reforço para a emoção, mas como uma dimensão própria. A música de Ligeti foi tocada sem uma palavra sequer de diálogo durante 16 dos 21 minutos finais do filme, uma exposição que outros compositores morreriam para ter.
Depois do acordo legal, o diretor continuou a usar a obra de Ligeti, copiosamente e com permissão, usando uma seção de "Lontano" em "O Iluminado" e de "Música Ricercata" em "De Olhos Bem Fechados". Ligeti foi à estréia alemã deste último, ao qual assistiu na companhia da viúva do diretor.
Por causa do litígio, nenhum CD com a trilha sonora de 2001 pôde ser lançado, e quando isso se tornou possível, nemhuma das gravações originais tinha o padrão necessário. Vincent Meyer, um meçenas suíço, permitiu que toda a música orquestral de Ligeti fosse gravada pela Sony Classical, com a Philharmonia, sob a regência de Esa-Pekka Salonen, o que Peter Gelb impediu. Ligeti, nesse meio-tempo se desentendeu com a orquestra e com Salonen. A Teldec ofereceu-lhe a melhor orquestra européia, mas isolou-o dos preparativos, a fim de impedir a interferência. A Filarmônica de Berlim tocou clinicamente e com atitude titubeante, sob a regência do britânico Jonathan Nott, quase sempre criando uma paisagem sonora original que deve atrair um ou outro cineasta. A música, "estática" na avaliação do compositor, remete às vezes à agitada música noturna que Bartók conjurou a partir da área rural que nunca dorme.

domingo, 2 de agosto de 2009

Shostakovich: Sinfonia nº 15 - Orquestra de Cleveland - Kurt Sanderling - Erato - Cleveland

A ambiguidade era parte da maneira de Shostakovich escrever suas sinfonias. Para os ouvidos oficiais, elas soavam como hinos de louvor ao sistema soviético, ao passo que, para as platéias russas, comunicavam um deslocamento solidário, uma tristeza compartilhada, um tipo de samizdat*. Cóigos e sinais ligados a uma agenda oculta se amplificavam em franca rebelião, em conversas mantidas pelo compositor, cujos registros foram preservados.
Apesar dos rumores largamente disseminados sobre sua vida dupla, os regentes ocidentais propositalmente tiraram conclusões errôneas sobre Shostakovich, a fim de alcançarem seus próprios objetivos. O poderoso Karajan afirmava que a sinfonia nº 10, claramente anti-Stalin, era a sinfonia que ele mais gostaria de ter escrito. Haitink interpretou o ciclo com a neutralidade de um país pequeno. Solti foi um misto de blefe e bazófia, Previn, fílmico; Ormandi, banal; e Bernstein, espetacular.
Depois da queda do comunismo a interpretação tornou-se excessiva. Buscavam-se significados ocultos em cada nota, ao passo que os acadêmicos brigavam em campos opostos. A ambiguidade, outrora um meio-segredo, perdeu seu sentido, na calor do cáustico debate público. Shostakovich tornou-se uma espécie de futebol para musicólogos frustados e ex-comunistas irredutíveis. O único veterano que sabia a verdade se recusava a falar - exceto para as orquestras, durante os ensaios. Kurt Sanderling, um refugiado de Hitler, trabalhara como segundo regente na Filarmônica de Leningrado. Seu chefe, Mravinsky, fez a estréia da maior parte das sinfonias, embora nunca tenha tido intimidade com o compositor. Sanderling, que regia os ensaios, fora um confidente muito próximo.
Diante das orquestras americanas, que nada sabiam do medo e das dificuldades da vida soviética, ele costumava explicar, cheio de paciência, como uma tuba retrata maldosamente a primeira missão de um espião do partido no estrangeiro, ou como um piccolo ilustra ironicamente a arrogância do poder.
Já com quase noventa anos, Sanderling abraçou o mais profundo enigma de Shostakovich: a sinfonia final, que começa com uma frase parodiada do Guilherme Tell, de Rossini, e termina, depois de muitas páginas quase em branco, em fragmentação mahleriana. Seria desespero? Desafio? Derrota? Sanderling apresentou uma paisagem de desolada beleza, a viagem de um moribundo através de sua vida, rica em autocitações e com a sensação de que tudo aquilo nunca tinha sido em vão. Não há nenhuma mensagem messiânica, nenhuma esperança vã oferecida aos que virão - apenas um tesouro feito de belezas musicais e mistérios, a matéria da vida. Cleveland abraçou o trabalho com o coração e tocou sem falsa inflexão. A sinfonia encontrou, finalmente, um significado além do significado.

sábado, 1 de agosto de 2009

Berlioz: Sinfonia Fantástica - Orquestra Sinfônica de Londres - Sir Colin Davis - LSO - Londres

Quando ficou claro que os grandes selos não se interessavam mais por música clássica, as orquestras ficaram desesperadas. Como as pessoas iriam ouvi-las novamente, ou diferenciá-las sem o oxigênio das gravações? O que seria de suas veneráveis reputações? Seria aquele o movimento final?
A Orquestra Sinfônica de Londres produziu, um tanto literalmente, a primeira solução para este problema. Em vez de implorar trabalho, elas gravaram concertos ao vivo com seu regente principal, pagando aos músicos nada mais que seu cachê normal, mas prometendo uma pequena participação nos lucros. Colin Davis, que regeu o primeiro ciclo de Berlioz em disco para a Philips, nos anos 70, estava revisitando seus triunfos iniciais com o benefício da reflexão madura. Seu ciclo continha muitas execuções memoráveis, entre elas uma Les Troyens magnificamente cantada, uma raridade fonográfica. Nenhuma obra, porém, concentrou mais a experiência do regente e a energia da orquestra do que a psicodelicamente colorida Sinfonia Fantástica, um mundo sonoro que intoxicara todos os grandes regentes, de Mahler e Toscanini aos dias de hoje (Bernstein, em sua gravação pela CBS, acrescentou uma palestra de improviso intitulada "Berlioz faz uma viagem"). A gravação de Davis de 1974 ficou no topo da lista dos críticos durante três décadas. Para eclipsar esta excelente interpretação, ele adicionou algum refinamento nas texturas e expandiu as dimensões aurais da fantasia, jogando com a direcionalidade dos efeitos especias. O diálogo distante dos pastores (solos de oboé e corne inglês) na abertura da "Cena do Campo" passa a ser visualizada em tela grande nesta versão. Os rufos e toques dos tímpanos surgem de repente, como surpresas aurais.
O cálculo da diferença espacial e o ruído da gravação ao vivo colocam esta gravação num lugar à parte das produções de estúdio. O produtor e o engenheiro de som foram os veteranos dos grandes selos James Mallinson e Tony Faulkner. O disco ficou entre os dez mais vendidos no Japão, e, mesmo tendo rendido pouco dinheiro para os músicos, estabeleceu o selo próprio como uma opção viável para as orquestras num mundo pós-gravação clássica.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Stravinsky: A Sagração da Primavera - Scriabin: Poema do Êxtase - Orquestra de Kirov - Valery Gergiev - Philips- Baden-Baden

Igor Stravinsky gravou a peça que lhe deu notoriedade duas vezes, com andamentos completamente diferentes. Pierre Monteux, que regeu a tumultuada estréia em Paris (1913) também fez duas gravações inconsistentes. O compositor desprezava os intérpretes modernos, descartando Karajan e Boulez por abuso pessoal; ao que parece, nenhuma versão podia satisfazê-lo. A partitura um sí é contraditória: por um lado, possuía as marcações matematicamente precisas de Stravinsky e, pelo outro, a bucólica selvageria da dança sagrada, uma metáfora da inata falta de regras da Mãe Rússia. Esta não é uma peça que possa ser interpretada com total segurança. A menos que pareça perigosa, a execução naufraga. Em disco, Bernstein e Rattle, ainda muito joven (com a Orquestra Jovem da Grã-Bretanha) chegam o mais perto possível da selvageria exigida. Numa noite de verão, em Rotterdam, eu ví uma dupla de pianistas ensaiando uma versão para dois pianos, sacudindo os nervos e as janelas da cidade. Quando terminaram, Valery Gergiev encontrou um piano de ensaio nos bastidores e tocou a peça novamente em particular, com uma frieza ameaçadora. A fúria das danças foi mantida em xeque até perto do final, e a ameaça de violência soou mais terrível do que a de um verdadeiro banho de sangue. Esta supressão do desejo parecia atingir o coração da dicotomia stravinskiana.
Eu fiquei até as quatro horas da madrugada caminhando ao lado de Gergiev pelas ruas de Rotterdam, discutindo os méritos relativos de Stravinsky e Prokofiev (que ele preferia). De origem caucasiana, criado dentro da fechada aristocracia soviética (seu tio foi o projetista de tanques preferido de Stalin), Gergiev não teve acesso algum ao ao mundo mental do ocidentalizado Stravinsky, que teve babás francesas, e também não nutria nenhuma simpatia por esses luxos. Sua visão da Sagração era intuitiva, ele sabia de onde ela brotava: dos sarcásticos rituais de rivalidade tribal que criaram seu país. Esses rituais estão no coração da Sagração, selvagens e circunspectos; pertencem a uma civilização que precede a civilização. Este é o habitat de Gergiev, e ele reina nele como um leão. Nada é respeitado nesta interpretação, a não ser a deferência devida a um conquistador. O fraseado - tão complicado que muitos maestros reescrevem a partitura sem barras de compasso - é tratado com maestria casual. A Orquestra de Kirov toca como se os músicos estivessem possessos. Nunca houve uma sagração como essa.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Beethoven: As Nove Sinfonias - Orquestra Tonhalle - David Zinman - Arte Nova - Zurique, Dezembro de 1998.

Arturo Toscanini, no início da década de 1950, estabeleceu as sinfonias de Beethoven como o ponto alto na carreira de um regente e a pedra fundamental de qualquer coleção clássica. O teto foi rapidamente rebaixado pela imitação em massa. Karajan, que gravou o ciclo energicamente com a Orquestra Philarmonia, da EMI, mais ou menos na mesma época, repetiu o trabalho mais quatro vezes. Seu ciclo em Berlim pela DG, gravado em 62, quando o muro foi levantado, definiu uma certa oposição materialista tanto ao comunismo quanto ao desenfreado consumismo americano. Karajan aspirava, em seus ataques beethovenianos, um padrão ainda mais alto em perfeição sonora e provas do seu domínio comercial. Otto Klemperer, em Londres, rebateu o efeito Karajan com verdades espirituais de uma época anterior, refletindo com seus andamentos recalcitrantes a rabugenta misantropia do compositor. Os egos se inflaram de tal forma que qualquer regente com um contrato exigia um ciclo próprio. Haitink, Solti, Josef Krips e André Cluytens foram os primeiros a largar, seguidos por Bernstein (duas vezes), Vaclav Neumann, Kubelik, Böhm, Wolfgang Sawalisch, Colin Davis, Neville Marriner, Walter Weller, Charles Mackerras, Gunter Wand e Kurt Masur. Abbado gravou o ciclo duas vezes, assim como seu arqui-rival, Muti. Christopher Hogwood deu início a ciclos com conjuntos de "época", seguidos por Gardiner, Norrington, Roy Goosman e a caixa de discos que vendeu um milhão de cópias, sob a regência de Harnoncourt. As prateleiras se curvaram com o excesso de Beethoven, e os inflacionários maestros ainda queriam mais.
Simon Rattle ensinou noções de música antiga para a Filarmônica de Viena - novos truques para cães velhos - numa satisfatória compilação híbrida. Daniel Baremboim tentou aplicar maneirismos de Furtwängler à Staatskapelle de Berlim com efeitos igualmente variáveis. A interpretação virou um pastiche. Finalmente, a paciência se esgotou, e os selos fecharam as janelas. Rattle e Baremboim supostamente seriam os últimos, sustentados por sua celebridade e pela curiosidade do público em saber o que eles poderiam acrescentar ao cânone. Então, a partir de um selo de porão disposta a fazer barganhas, veio uma brisa fresca. David Zinman (um regente americano há muito subestimado, que havia tarbalhado em Baltimore e Zurique) ficou cativado pela restauração acadêmica dos manuscritos de Beethoven, preparada pelo musicólogo britânico Jonathan del Mar, com meticulosa atenção aos documentos do compositor. Zinman requisitou os direitos para a primeira gravação, em meio a um considerável ceticismo. Todas as dúvidas foram dissipadas pela abertura da Eróica, com seus andamentos rápidos e texturas transparentes, se comparadas tanto com Rattle como com Baremboim, ou com qualquer versão com instrumentos de época. Nas mãos de Zinman, ela se tornou, entre episódios comoventes e espirituais, música para dançar.
Seria exaustivo listar os exemplos de excelência, pois eles são intermináveis. A abertura da Quinta Sinfonia tem o impulso mais natural desde Kleiber; a Pastoral é irresistivelmente sedutora; a Sétima é magnificamente estruturada; e o Adágio da Nona tem uma qualidade camerística de extraordinária intimidade. Estas interpretações passam a idéia da pureza da fonte e são tocadas com brio e surpresa que fazem arregalar os olhos em uma acústica digital cristalina. Não houve nenhuma vaidade neste projeto, nenhum ego presunçoso de maestro. Zinman dirigiu diretamente a partir da partitura, com poucas superposições pessoais. Del Mar enumera os pontos em cada sinfonia nos quais o ouvinte pode realmente ouvir a diferença - o que foi uma novidade emocionante.
Muitos dos músicos da orquestra de Zurich têm sobrenome tchecos e húngaros, compartilhando uma herança centro-européia com a Filarmônica de Viena. Este é um Beethoven realizado por especialistas, fácil de ouvir, atual em sua essência musicológica e fresco como uma brisa alpina depois da chuva. É uma raridade clássica e um lançamento genuinamente novo.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

The Hyperion Schubert Edition - Vários artistas, com Graham Johnson (piano) - Londres 1987-98

Ted Perry, um motorista de táxi com aspirações artísticas, montou seu selo em uma lúgubre esquina de Londres, com um empréstimo de um amigo. Assim que pagou a dívida, ele propôs aos melhores csntores de Lieder do mundo a gravação de todas as 631 canções de Schubert. O pedido foi tão imprudente - e tão sincero - que até mesmo estrelas exclusivas de grandes selos deram um jeito de escapar de seus contratos e se juntaram à edição integral da Hyperion. Também ajudou o fato de que Graham Johnson, um dos melhores acompanhadores do mundo, estava encarregado de selecionar os programas, balanceando cuidadosamente, em cada lançamento, canções familiares com as esotéricas.

Janet Baker, Elly Ameling e Brigitte Fassbänder abriram mão de suas aposentadorias para uma última canção; Dietrich Fischer-Dieskau, que, com pouco mais de setenta anos deixara de cantar, narrou episódios de A Bela Moleira. Arleen Auger, muito enferma, cantou um número exepcional com piano e clarineta. Lucia Popp, que também teve sua vida tragicamente encurtada, gravou sua última faixa. Margaret price e Peter Schreier, Thomas Hampson e Edith Mathias, todos se juntaram à sempre crescente festa que resultou num conjunto de 40 discos, acompanhados de um libreto.
Ao lado deles brilhou um bando de colegas cantores, selecionados por Johnson, todos à caminho do topo. Ian Bostridge, Christine Schäfer, Matthias Görne e Simon Keenlyside eram os talentos do Lied do futuro, aprendendo à medida que cantavam. Bostridge é idealmente inocente em "Mein"; Ann Murray é mágica em "Rückweg". Alguns dos nomes mais famosos estão no limite de se tornarem coisas do passado, mas este não é um conjunto a ser julgado pelas partes, ou mesmo pela soma. A Edição Schubert do selo Hyperion é uma das grandes realizações da indústria de gravação da música clássica, ainda mais impressionante por ter sido obra de um só homem. Trata-se de um monumento histórico, único e insuperável.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Bruckner: Sinfonia nº 5 - Royal Scottish Orchestra - Georg Tintner - Naxos - Glasgow, 1996.

Um novo selo clássico apareceu em 1988, vendendo CDs a um terço do preço usual, fazendo deles um artigo barato. As orquestras eram desconhecidas, e os regentes e solistas, obscuros. Os discos vinham de Hong Kong e pareciam voltados para o crescente (e algo indiscriminado) gosto dos Tigres Asiáticos pela cultura ocidental.
Os críticos receberam a Naxos com coletivo desdém. O que mudou o tom foi um ciclo de sinfonias de Bruckner que trouxe reminiscências dos velhos mestres: Klemperer, Furtwängler, Karajan. Logo no compasso inicial da Quinta Sinfonia de Bruckner, o fraseado perfeito, o ritmo idiomático e a paixão resoluta anunciaram uma interpretação de indiscutível autoridade.
O regente, Georg Tintner, era um nome desconhecido mesmo para os seguidores obsessivos de maestros. Expulso de Viena em 1938, onde havia regido a Ópera Popular, Tintner vagou sem resultados pela Nova Zelândia e pela Austrália, impressionando os músicos com seu rigor e ofendendo os agentes com uma aderência rígida a princípios. Já com mais de setenta anos, ele havia encontrado alguma satisfação com uma orquestra na província da Nova Escócia, no Canadá, mas sua ambição de progresso parecia fadada ao fracasso, quando um encontro com Klaus Heymann, o dono da Naxos, colocou as engrenagens para funcionar. Heymann havia começado a gravar sistematicamente o repertório sinfônico, um compositor após o outro. Ele havia contratado dois regentes alemães e a Orquestra Sinfônica da Nova Zelândia para a obra de Bruckner, mas nenhum dos maestros conseguiu se entender com os músicos, que estavam em um período de rebeldia. Tintner viajou para tentar a Sexta e a Nona Sinfonias de Bruckner na Nova Zelândia, mas os músicos se comportaram mal e as sessões tiveram que ser canceladas. Heymann procurou várias orquestras britânicas, mas nenhuma delas estava disposta a arriscar sua reputação com um regente desconhecido.
Foram os escoseces que quebraram o gelo, acolhendo o fervor místico de Tintner, que de certa forma refletia a própria ingenuidade camponesa de Bruckner. A interpretação de Tintner, entretanto, era moralmente profética, concebida numa escala grande como a de uma catedral gótica. Depois do Adágio de abertura, o primeiro movimento, o Allegro, pressagia o sofrimento e a redenção humanos; os movimentos intermediários são uma tela fértil de civilização rústica, e o finale, nesta interpretação magistral, costura não só os temas díspares de uma obra de 80 minutos de duração, mas também, em ecos fugazes, a história da música, de Bach a Beethoven. Ela realmente soa como se Tintner tivesse esperado a vida toda para realizar essa gravação. A orquestra escocesa, em ótima forma, completou o ciclo nos dois anos seguintes, com exceção de três obras que foram destinadas à Orquestra Sinfônica Nacional da Irlanda. A aclamação só aumentou a cada novo lançamento. Um conjunto das missas de Bruckner estava planejado, e a Ópera Nacional Inglesa andava sondando Tintner para Parsifal quando o regente, aos 82 anos de idade, se jogou de uma escada enquanto sofria os tormentos de um câncer terminal. Seu ciclo de Bruckner vendeu meio milhão de cópias, muito mais que qualquer outro antes ou depois dele.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Verdi: La Traviata - Angela Gheorgiu - Franck Lopardo - Leo Nucci - Orquestra e Coro da Royal Opera House - Sir Georg Solti - Decca - Londres

Sir Georg Solti estava fazendo um retorno sentimental ao Covent Garden, por ele comandado nos anos 60, com uma ópera que, por alguma razão, ele nunca havia regido e estava tendo que estudar a partir do zero. O diretor era Richard Eyre, diretor do Teatro Nacional Britânico, um homem que detestava o artifício da ópera e nunca havia dirigido uma. Eyre assustou-se quando descobriu, ao entrar no teatro de ópera, que um cantor ganhava dez vezes mais que a mais bem paga atriz shakeaspeariana. Havia um quê de azedume puritano na abordagem de Eyre, o que lançava um mau pressentimento sobre essa produção.
O acaso interveio. Uma soprano desconhecida, filha de um ferroviário da Romênia, caiu nas graças do diretor de elenco do Covent Garden poucas semanas depois de deixar o conservatório de Bucarest. De olhos grandes, bela e com uma ferocidade que lembrava Callas, Angela Gheorgiu preenchia todos os requisitos de potência vocal e dramática e estava sendo cortejada de todas as maneiras para aceitar papéis ao lado de Plácido Domingo, entre outros. Solti e Eyre concordaram que ela seria a Violeta ideal. Nos bastidores, a vida dela tomou um rumo diferente. Um cantor franco-siciliano, Roberto Alagna, veio de avião, após o funeral da esposa, para cantar o Romeo de Gounod. Faíscas se espalharam nos bastidores. Logo em seguida, ele e Gheorgiu se casaram. "O público tem sorte de nos ter", proclamou Alagna. Jonathan Miller, diretor de palco britânico, chamou o casal de "Bonnie & Clide da ópera". Eles foram despedidos do Met, tal como Callas. Tudo isso, entretanto, ainda estava por acontecer.
Solti, sentindo que tinha nas mãos uma estréia extraordinária, convenceu a BBC a transmitir pela TV a noite de abertura. Andrew Porter, um crítico veterano, escreveu: "Eu encontrei uma dessas performances em que somente o presente parece importar: é quando as memórias se desvanecem e qualquer conhecimento prévio ou comparação são colocados de lado". A Decca convocou imediatamente sua equipe de gravação.
Rúsitica, como algumas gravações ao vivo costumam ser, neste o domínio de Solti é maravilhosamente compassivo e os papéis secundários são extremamente bem cantados. É Angela Gheorgiu, no entanto, quem captura nossos ouvidos com um magnetismo que não se ouvia há uma geração de divas. Sua entrada sotto voce "E strano" combina pathos e pavor com confiança sexual em alta voltagem. Tal como acontece com Callas em Tosca, você sente que nada está fora do alcance dessa mulher, inclusive o assassinato. Brilhante e impecável na voz e na articulação, Gheorgiu lança as lembranças de Sutherland e de Pavarotti (também pela Decca) na escuridão. Ela se apossou do papel de Violeta com perturbadora convicção, e não é preciso ouvir a erupção da platéia para confirmar a visão de um cometa ascendente.

domingo, 26 de julho de 2009

Mahler - Sinfonia nº 6 Orquestra Filarmônica de Londres - Klaus Tennstedt - EMI - Londres

Ninguém que tenha visto Tennstedt reger se esquecerá da incerteza prévia. A orquestra sentava-se em posição, meio que esperando o cancelamento, enquanto os minutos se passavam após o horário agendado. Então, entrando rapidamente no palco, quase tropeçando, aquela figura periclitante subia ao pódio e, com o mais inocente dos sorrisos, dava início a uma execução como nenhuma outra, antes ou depois. A essência de sua arte era a espontaneidade, o que era um anátema para o ethos perfeccionista do estúdio de gravação.
Tennstedt era um regente natural, não-intelectual, que absorveu os princípios de regência de seu pai, violinista principal na pequena cidade de Halle na ex-Alemanha Oriental, e iniciou-se no instrumento, até que um ferimento na mão acabou com sua carreira. Perseguido pelos comunistas, ele fugiu para a Alemanha Ocidental, onde viveu em provinciana obscuridade, até que uma série de coincidências o levasse a uma explosiva estréia americana em Boston, depois da qual o mundo e os selos de gravação ficaram a seus pés. Tennstedt respondeu com um sério colapso nervoso. Encontrou, porém, apoio na música de Gustav Mahler, que se tornou o leitmotiv da sua ansiosa vida. O Mahler de Tennstedt era inteiramente intuitivo, ignorante a respeito de teoria crítica e insuflado pela experiência pessoal. A Sexta, disse-me ele certa vez, antecipou em seus compassos iniciais o ruído das botas dos nazistas, e seu triste finale retrata a impotência do indivíduo em face da tirania do Estado. Estes insigths foram subliminarmente integrados às execuções, sem gestos explícitos ou explanações nos ensaios. Os concertos de Tennstedt eram enriquecidos tanto pelo impulso momentâneo como pela reflexão prévia.
Sua abordagem de Mahler era narrativa, um evento sucedendo outro, implacavelmente, até a pressão se tornar insuportável e a catarse ter lugar. Na Sexta, ele equilibra o terror do primeiro movimento com passagens de profunda compaixão, acelerando o passo até o frenesi do Scherzo, que leva a um Andante de incomparável suavidade. No desolado finale (não há nada mais desolador em todo o repertório sinfônico), ele permite algumas fendas de consolo. O público presente a um concerto da BBC Proms ficou imóvel durante os noventa minutos da Sexta, petrificado pela intensidade da interpretação. A gravação em estúdio de 1983 (EMI) não expõe o alto risco que Tennstedt cortejava, e foi excessivamente maquiada pela edição. Esta execução ao vivo, feita após o retorno do maestro de um tratamento para um câncer na garganta, é menos selvagem que o usual mas aprofunda-se com uma irresistível finalidade. O câncer e a insegurança levaram a arte de Tennstedt a um final balbuciante e trágico.

sábado, 25 de julho de 2009

Gorecki: Sinfonia nº3 - Dawn Upshaw - London Sinfonietta - David Zinman - Nonesuck - Londres

Henryck Mikolai Gorecki, um compositor desconhecido, entrou para as paradas em 1993 com uma sinfonia que vendeu 750 mil CDs. Seu finale, com a participação de uma soprano, foi composto com base nas inscrições feitas por uma garota na parede de uma cela da Gestapo. Usando sua timidez como um escudo, o compositor polonês de Katowice, que era manco, enfrentou uma mesa-redonda de jornalistas em Bruxelas, falando um vacilante alemão e mostrando-se incapaz de explicar seu sucesso. Minha lembrança é a de um homem pequeno e moreno à deriva, numa enxurrada provocada, sem querer, por ele mesmo. "Minha sinfonia não tem nada a ver com a guerra", insistiu ele, "é um lamento simétrico de uma filha por sua mãe, e de uma mãe por sua filha."
Gorecki escrevera sua Terceira Sinfonia dezessete anos antes, como uma resposta católica ao modernismo atonal, por um lado, e ao comunismo monocromático que mantinha seu país preso a num grampo de aço, por outro. Mais meditativa que minimalista, a sinfonia foi executada em festivais de música contemporânea, não obtendo mais do que o escárnio geral, e foi gravada duas vezes por selos regionais, sem muito reconhecimento. Foi preciso que se somassem a voz de Dawn Upshaw, a London Sinfonietta e um regente exepcionalmente sensível para que a transcendência espiritual da obra fosse reconhecida. O processo de gravação foi trabalhoso. As sessões foram agendadas para a Igreja de Santo Agostinho, em Kilburn, num movimentado cruzamento no noroeste de Londres, mas o engenheiro de som Tony Faulkner advertiu que o ruído da rua poderia arruinar a atmosfera e mudou-as para um estúdio em Wembley, com um considerável custo adicional. Foi dito à equipe que eles receberiam metade do pagamento devido e, caso não aceitassem esse acordo, a gravação seria cancelada; Upshaw foi aconselhada pelo seu agente a pedir dinheiro em espécie, em vez de direitos autorais. O produtor Colin Mathews, talentoso compositor e especialista em Mahler, levou a equipe para comer um curry barato na vizinhança, quando a última tomada foi feita, e todos esqueceram do disco.
No Natal do ano seguinte, o disco estava vendendo à razão de um por minuto. Gorecki tornou-se objeto de um leilão da parte dos editores musicais e fechou-se imediatamente, não produzindo nenhuma outra partitura ao longo da década seguinte. A sinfonia fracassou fragorosamente em execuções ao vivo; seu sucesso ficou confinado ao disco. Mas seu compositor podia voltar satisfeito para a terra natal, pois sabia que acabara de vender mais do que a maioria dos astros pop internacionais.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Handel: Messias - Philarmonia Baroque Orchestra - Nicholas McGegan - Harmonia Mundi - UCLS, Janeiro de 1991

Na revolução da música antiga, o Messias se tornou um prato grátis para todos, com cada aiatolá da alegada autenticidade produzindo sua própria doutrina em disco. Você pode ouvir uma execução datada a carbono-14 regida por Christopher Hogwood, um coro de dezesseis cantores, com Harry Christophers; o manuscrito assinado por Handel no Hospital dos Órfãos, com Paul McCreesh; ou os tempos acelerados de John Eliot Gardiner. Você pode ouvir tudo, de fato, exceto as apreciadas versões grandiosas, que foram banidas pelos mulás, tachadas de heréticas e politicamente incorretas para nossa época de austeridade musical. No meio da sangrenta disputa, surgiu Nicholas Mcgegan, um inglês na Califórnia, com sua versão "faça você mesmo" deste oratório, que incluía todas as variantes conhecidas no tempo de Handel em um conjunto de Cds que permitia aos ouvintes escolherem em casa a sua combinação preferida. Há uma hora a mais de música nesta gravação do que em qualquer outra do Messias, e ela pode ser usada para recriar qualquer uma entre nove versões distintas. A ária "But who may abide the day of His coming" é cantada segundo a tradição rigorosa, por um contratenor, mas o álbum contém brilhantes alternativas para baixo e soprano, cada qual com diferenças substanciais, bem como um recitativo seco para aqueles que preferirem pular o sublime trecho de Handel. Quem for um enlevado handeliano tem ainda como prêmio a escolha entre duas versões de "He was despised", uma para contralto e a outra para soprano. O álbum, como um todo, é um dos mais divertidos jogos musicais de salão jamais inventados.
O liberalismo de McGegan foi, compreensivelmente, atacado por maestros fundamentalistas e menosprezado por seus críticos de estimação, mas a lógica é impecável e a musicalidade, inspiradora. Há trechos vocais sensacionais com a ainda desconhecida soprano Lorraine Hunt, e a meio-soprano Patricia Spence, o contratenor Drew Minter e um coral de Berkeley competentemente dirigido pelo musicólogo de campo Philip Brett, que tentou provar para todo mundo, sem qualquer evidência sólida, que Handel era definitivamente gay. Academica, fofoca e glamour - foi tudo o que o compositor encomendou.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Brahms: Sinfonia nº 1 - Orquestra Filarmônica de Berlim - Claudio Abbado - DG - Berlim

Fazia menos de um ano que o Muro de Berlim caíra e a cidade já estava novamente dividida entre ricos e pobres, triunfo e incerteza. A sala octogonal da Filarmônica, pintada de ocre, construída como um símbolo da rivalidade da Guerra Fria em um terreno desolado nos limites do Mundo Livre, estava agora em uma valorizada área de desenvolvimento, vibrando ao ritmo dos bate-estacas de empresas multinacionais.
Herbert von karajan estava morto, e sua orquestra havia escolhido como regente Claudio Abbado, um italiano reticente, socialista, modernista e elegante. Ele tinha apenas um concerto para ganhar a simpatia dos adoradores de Karajan, e seria este. Abbado escolheu a Primeira Sinfonia de Johannes Brahms, uma obra inserida na consciência germânica como um ato de continuidade cultural - tanto que muitos se referem a ela como a Décima de Beethoven. A sala estava cheia de pessoas idosas, com cabelos prateados e cicatrizes de duelos, e muitos apegados aos preconceitos do passado. Abbado fez com que a platéia se sentisse radiante logo aos primeiros compassos, uma monumental afirmação de absoluta segurança e um som imaculado. Somente algumas poucas frases das madeiras deram alguma sugestão de intenções subversivas. Os movimentos intermediários foram suntuosamente organizados, e o adágio que introduz o finale nunca soara tão brilhante, mesmo sob o olhar a laser de Karajan. Mas, quando a sinfonia chega à apoteose sonora, que o velho maestro costumava abordar com muitas mudanças de marcha e sinais de redenção, Abbado segurou a orquestra, abafando a dinâmica e permitindo que a melodia despontasse imperceptivelmente da textura precedente. Quando ela surge, o mundo é iluminado por uma luz diferente, mais quente e menos agressiva. Foi um momento de eureca, um novo alvorecer. Na manhã seguinte, com este autor e outras pessoas como testemunhas, Abbado assinou um contrato de longa duração com o antigo selo de Karajan e iniciou o processo de transformação da orquestra. Quando ele saiu, uma década depois, poucos músicos de Karajan ainda faziam parte do grupo, e o ethos das execuções evoluíra do antiquadamente soberbo para o elegentemente imponente. A orquestra permaneceu, no entanto, como uma instituição de elite, recusando-se a dar emprego a músicos da ex-Alemanha Oriental ou da parte leste de sua própria Berlim. Apesar de fabulosa, a Sinfonia nº 1 de Brahms foi um falso alvorecer.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Shostakovich: 24 Prelúdios e Fugas, Op 87 - Tatiana Nikolayena - Hiperion - Londres Setembro de 1990.

Sob a fúria de Stalin, impedido de começar outra sinfonia e vítima constante de calúnias, Dmitri Shostakovich se voltou para as enganosas simplicidades de Johann Sebastian Bach. Enviado a Leipzig como jurado de um concurso de piano em homenagem ao bicentenário do compositor, em julho de 1950, ele votou (como lhe fora determinado) na candidata soviética. Com 26 anos, Nikolayeva parecia uma tratorista de fazenda, mas deixou os jurados estupefatos ao se propor a tocar todos os 48 prelúdios e fugas de Bach. O júri escolheu o Prelúdio e fuga em Fá Sustenido menor e deu a ela o primeiro prêmio.
De volta a Moscou, Shostakovich telefonou para Nikolayeva para dizer o quanto apreciara a apresentação dela, e que estava compondo seus próprios prelúdios e fugas. "A seu pedido, eu lhe telefonava todos os dias, e ele pediu-me que fosse à sua casa para ouvi-lo tocar as peças que acabara de compor", relatou ela. Em maio de 1951, ele tocou o ciclo, buscando a aprovação da toda-poderosa União dos Compositores, dirigida por Tikhon khrennikov, com Nikolayeva virando as páginas. O dia estava sufocantemente quente, e Shostakovich, nervoso. Seu recital foi recebido com uma enxurrada de críticas pseudopolíticas, vindas de um batalhão de medíocres invejosos e bajuladores covardes. Por grande maioria de votos, a União recusou-se a permitir que Shostakovich tocasse a obra em público. No verão seguinte, Nikolayeva conseguiu permissão para tocar a obra para um outro comitê, numa ocasião em que Shostakovich estava fora da cidade. Alguns dos compositores que o atacaram na primeira audição agora aplaudiram entusiasticamente. Nikolayeva conseguiu agendar a estréia em Leningrado para Dezembro de 1952; Shostakovich escreveu uma dedicatória privada para ela (omitida na edição publicada). Ele jamais executou o ciclo completo em público, mas uma semana antes de sua morte ela telefonou para Nikolayeva e pediu-lhe que tocasse alguns dos prelúdios no concerto comemorativo de seu próximo aniversário.
Ela foi a primeira a gravar o ciclo fora da Rússia , dialogando com a música dentro de uma igreja vazia em Londres, numa interpretação que juntou as lutas distintas de Bach e Shostakovich para dominar e editar a forma musical. O ciclo abre-se com onze segundos de silêncio cavernoso, antes que um tema hesitante apareça das trevas, dando uma sugestão de tonalidade em Dó maior e mantendo um nível dinâmico que nunca vai além do mezzo-forte. À medida que o tema dá lugar aos que o sucedem em saltos de quinta ascendente, o ouvido é beliscado por discordâncias inesperadas, notas de desespero que estão enterradas nas fendas de uma concepção elevada. Trata-se de uma obra-prima sob todos os aspectos.
Nikolayeva teve permissão do compositor para fazer alterações, e costumava adicionar ou omitir uma repetição (na Quarta Fuga, por exemplo) em nome da elegância estrutural. Fisicamente maciça e desprovida de vários dentes frontais, ela sentava-se ao piano como uma testemunha num julgamento por crimes de guerra, invencível e inesquecível. A gravação recebeu prêmios internacionais e gerou convites para turnês. Em 13 de Novembro de 1993, no intervalo de um recital público dos prelúdios e fugas em São Francisco, Nikolayeva teve um colapso no camarim e morreu, tendo completado seu testemunho.

terça-feira, 21 de julho de 2009

rês Tenores em Concerto - José Carreras - Plácido Domingo - Luciano Pavarotti - Zubin Mehta - Decca - Roma, julho de 1990.

Este não pode ser descrito como um encontro entre iguais. Carreras estivera desesperadamente doente de leucemia, e os outros dois, com vozes maiores, se entusiasmaram em agradecer pela sua recuperação com um concerto beneficiente para o tratamento do câncer infantil. "Tanto Plácido como eu admiramos muito esse belo homem", disse Pavarotti, já sentindo a vitória num torneio de gladiadores (em um palco, postou-se um grupo variado de jurados, os resultados dos votos eram exibidos à platéia após a apresentação de cada ária).
Nenhum concerto dos três tenores jamais havia sido transmitido ao vivo, e as organizações da mídia foram lentas em aproveitar a oportunidade. A Copa do Mundo estava sendo disputada na Itália, e os tenores, todos fãs de futebol, cantariam numa única noite livre. A Decca, selo de Pavarotti finalmente concordou em investir 1 milhão de dólares, que seriam divididos entre os cantores e o maestro escolhido por eles, Zubin Mehta. Nada mal para uma noite de trabalho. Os tenores mantiveram-se rigorosamente afastados, cada um cantando alternadamente um número de sua preferência. Domingo teve seu clímax com "E Lucevan le Stelle" da Tosca, e Pavarotti com "Nessum Dorma" de Turandot. Os três se juntaram no final num medley de doze canções, com um arranjo de Lalo Schifrin, e, quando os aplausos continuaram, eles retornaram com "O Sole Mio". Mas a noite foi selada com um "Nessum Dorma" a três, o tema da Copa na televisão italiana. O delírio da platéia foi incontido. Quando o CD chegou às lojas, tornou-se o lançamento clássico mais vendido de todos os tempos.
Em que medida os tenores foram bons? Berthold Goldschmidt, um compositor octogenário que trabalhara em Berlim com os melhores cantores de ópera desde os anos 1920 e tocou celesta na estréia mundial de Wozzeck, telefonou-me durante a transmissão ao vivo para dizer que, em toda a sua vida, jamais tinha visto tamanha exibição de técnica vocal virtuosística.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Rossini: Árias de Ópera - Cecilia Bartoli - Orquestra Popular de Viena - Giuseppe Patane - Decca - Viena

Nenhuma outra soprano conseguiu chegar a uma décimo das vendas de Maria Callas, o que diz muito sobre a supremacia da cantora grega. A competidora mais próxima foi uma jovem meio-soprano que, como Callas, tinha uma voz inconfundível e uma vontade inquebrantável. Bartoli foi descoberta aos dezenove anos, numa audição em Milão, pelo produtor da Decca Chirtopher Raeburn. Duas árias de Rossini, de Tancredi e L'italiana in Algeri, deixaram-no sem palavras. Raeburn escalou-a para para "O Barbeiro de Sevilha" e também para um álbum solo com árias de Rossini, uma exposição ousada e prematura para um artista que mal tinha subido ao palco. Bartoli, nascida em 1966, foi cantora infantil em dois coros da Ópera de Roma e dançou flamenco antes de começar seu treinamento vocal, que revelaria seus traços particulares, em especial a independência e a vivacidade. Os divulgadores tentaram adorna-la conforme a usual parafernália, mas ela preferia o jeans. Mesmo com o aconselhamento de regentes experientes como Daniel Baremboin e Nikolaus Harnoncourt, ela resistia aos diretores de forma vingativa, chegando a colocar Jonathan Miller para fora do Met.
Restringindo-se a trabalhar apenas alguns meses por ano, ela manteve sua voz imaculada, seus cachês altos e sua privacidade intacta. Somente Bartoli poderia ter gravado álbuns de sucesso com árias obscuras de Scarlatti, de Vivaldi ou Gluck. Somente Bartoli poderia, numa época de desespero em gravar, recusar o lucro fácil, mantendo-se fiel ao repertório clássico, que veio para ela de forma tão natural. Em Rossini, ela não teve nenhuma rival contemporânea sua, revelando uma profundidade vermelho-rubi em afinação e cor no papel de uma garota italiana em Argel, uma conquistadora vitalidade e um impressionante vibrato como a heroína da Cenerentola. Ela nos traz um sorriso aos lábios, mesmo em disco.

domingo, 19 de julho de 2009

Bruckner: Sinfonia nº 7 - Orquestra Filarmônica de Viena - Herbert von Karajan - DG - Viena, 23 de Abril de 1989.

Hitler nasceu no mesmo local (Linz) que Anton Bruckner e considerava esta sinfonia como o ponto alto da música alemã, no mesmo patamar da Nona Sinfonia de Beethoven. Caso vencesse a guerra ele reconstruiria Linz como a capital cultural da Europa. Ele culpava os judeus, escreveu Goebbels, por fazerem de Brahms um compositor mais popular que Bruckner.
A Sétima sinfonia, uma elegia à morte de Wagner, estava de acordo com o humor de Hitler, à medida que a guerra dava uma reviravolta contra ele. Lírica e na tonalidade de Mi Maior, ela desce para um solene Adágio em Dó sustenido menor, empregando quatro tubas wagnerianas para ilustrar a fonte de todas as tristezas. A música de Bruckner foi a última a ser tocada na Rádio de Berlim antes da queda da cidade: ela simbolizava a morte e a transfiguração. Décadas depois, o mais poderoso regente no mundo da gravação, atormentado pela dor e desgastado pelos conflitos com a Filarmônica de Berlim, escolheu a rival vienense para seu próximo concerto de Bruckner . Herbert von Karajan estava com 81 anos e visivelmente doente. Sua interpretação chocou os admiradores, devido à falta daquele lustro imaculado e à ausência do que os músicos chamavam de "perfeccionismo gélido". Havia entradas quebradas, uma aspereza tensa nas cordas, um gosto de terra. A gravação não tinha nada de sua assinatura pessoal, mas, mesmo assim, Karajan aprovou-a, talvez por falta de arrogância ou por humildade.
Ao lado de interpretações épicas como as de Klemperer, Furtwängler e Giulini, esta se destaca como extraordinária, levada impulsivamente ao limiar do entendimento. Enquanto o Allegro Moderato de abertura é excessivamente brilhante, o Adágio, muito lento, muda para o sepulcral; o Scherzo e o finale são profundamente perturbadores. É impossível sabermos o que se passou na mente do Maestro, mas parece que ele tentou mostrar que a imperfeição é uma parte necessária da vida, que a aflição e o lamento não são coisas belas e que todos devem aceitar seu destino. Esta foi a última gravação de Karajan. Três meses depois, ele estava morto.

sábado, 18 de julho de 2009

Halévy: La Juive - José Carreras - Ferruccio Furlanetto - Dalmacio Gonzalez - Julia Varady - June Anderson - Orquestra Philharmonia - Ambrosian Chorus

Uma das óperas mais populares do séc. XIX, La Juive sumiu do repertório porque poucas casas de ópera modernas conseguiam encontrar ou podiam pagar três tenores líricos, cada um deles capaz de sustentar uma grande cena. A ópera é imensa, com bem mais que quatro horas de duração, e sua influência foi vasta - não só sobre Berlioz, Gounod, Bizet e Saint-Saëns, mas também sobre o jovem e impressionável Richard Wagner, tanto quanto ele desprezava o tema judaico. A obra é um estudo essencial do auge da grande ópera. Eleazar foi o último papel que Caruso cantou no palco, no Met na noite de Natal de 1924.
Com a ascensão do nazismo, ela foi desfavorecida - sua última apresentação em Paris tinha acontecido em 1934 - e, quando a normalidade foi restaurada, tinha sido completamente esquecida, exceto por algumas execuções esporádicas em concertos. Sua ausência irritou os Amigos da Ópera Francesa de NY, um grupo que bancava espetáculos de uma única noite no Carnegie Hall. Algum dinheiro foi arrecadado, e Erick Smith, da Philips, reuniu um elenco confiável, sob a direção de Antonio de Almeida, provavelmente a maior autoridade mundial em ópera francesa e proprietário de uma inigualável coleção de partituras em primeira edição. Almeida fez alguns cortes, de modo a manter os custos controlados em três discos, e dividiu as sessões ao longo de três anos e dois locais para acomodar as agendas lotadas de suas estrelas principais. Apesar dessas restrições, sua interpretação é estilisticamente auntêntica e narrativamente atraente. Carreras, no auge vocal, lidera o grupo de tenores; Julia Varady (Sra Fischer-Dieskau) um tanto plena e estridente demais, representa uma heroína épica, forçada a escolher entre a fé e a vida. As peças do conjunto são maravilhosamente executadas, mas nunca melhor do que na oração arrebatada de Eleazar, "O Dieu, Dieu de nos pères", com a cavatina pascal que a sucede. A gravação vendeu pouco, basicamente para aficcionados e colecionadores de raridades, mas seu lançamento fez o mundo da ópera se lembrar da existência de La Juive, que foi encenada em Viena e em NY na década de 1990. A Ópera de Paris inclui-a de novo no repertório, finalmente, em 2007.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Gershwin: Porgy and Bess - Willard White - Cynthia Haymon - Orquestra Filarmônica de Londres - Simon Ratle - EMI - Londres

A história de Gershiwn sobre os duros amores entre pessoas de classe social baixa foi um anátema para as casas de ópera. Recusada pela esnobe Metropolitan Ópera House, ele teve uma estréia modesta em Boston em Setembro de 1935, e depois foi transferida para o Alvin Theater, na Broadway, para uma temporada de 124 noites. Quando o espetáculo perdeu seu investimento de 70 mil dólares, Gershwin caiu em desespero. Depois da morte do compositor em Julho de 1937, Porgy pairou no limbo entre o teatro comercial e a ópera de repertório, vítima do veredicto da primeira noite, dado pelo crítico Olin Downes, do NY Times: "O sr. Gershwin ainda não formou compeltamente seu estilo como compositor de ópera".
O Met cogitou sobre uma montagem de Porgy para as comemorações do bicentenário da Independência dos EUA, em 1976, mas recuou, pelas mesmas razões anteriores. Acertos foram finalmente concluídos em Fevereiro de 1985 (Simon Estes e Grace Bumbry nos papéis centrais), mas foi no verão seguinte, num contexto muito mais improvável, que a obra ganhou reconhecimento universal. Simon Ratle, o regente britânico em ascensão, tentava persuadir Glydenbourne, o festival de verão dos ricos, a se engajar com as classes baixas. Trevor Nunn, diretor da Royal Shakeaspeare Company e de muiscais de Andrew Lloyd Webber, adorou a história de Porgy; Willard White e Cynthia Haymon ficaram com os papéis-título. As seis semanas de ensaios na área rural de Sussex foram um festival de interação multirracial na verde e agradável Inglaterra. Na noite de abertura, as camisas com enchimentos se dissolveram em um choro irresistível, e o coro de Glyndebourne soou divinamente. Ratle marcou os ritmos com precisão, entre a ópera e o cabaré, e o elenco não teve nenhum ponto fraco. "Summertime", com Harolyn Blackwell, é cantada de uma maneira tão doce e elevada que parece algo praticamente fora de seu corpo; Bruce Hubbard é profundo, em todos os sentidos, no papel de Jake.
O movimento perpétuo de trens e navios prontos para partir é nervosamente inato ao ritmo de Ratle. Esta ópera saiu à sua própria maneira. A gravação, feita dois anos mais tarde em Abbey Road, luta para recapturar a emoção original, mas, de qualquer maneira, exprime um momento da história da prática musical em que a cor e a classe social deixam de importar, e os artistas e a audiência são reunidos pela humanidade que possuem em comum.

Verdi: Otelo - Plácido Domingo - Katia Ricciarelli - Justino Diaz - Coro e Orquestra do Teatro Scala - Lorin Maazel - EMI - Milão

O contraste entre os dois tenores reinantes no final do séc. XX era pronunciado. Domingo era um profissional poliglota com uma centena de papéis em seu crédito, o primeiro cantor dos tempos modernos a abraçar heróis de Wagner e também os dramas franceses e russos. Luciano Pavartotti era uma casa de máquinas pouco sofisticada que cantou em sua própria língua em trinta óperas e vendeu mais discos que Caruso.
Otelo foi o papel definidor para Domingo, um ponto alto da ópera italiana que ele escalou acima do seu arqui-rival Pavarotti, que evitou o papel até ser tarde demais. Domingo se apossou do personagem ainda jovem, no início dos anos 70: um espanhol apaixonado representando o mouro sem ter que pintar o rosto, e cantando com suavidade e veneno. Seu dueto "Si, pel ciel marmoreo giuro", com Iago, é certamente um irresistível sucesso. Domingo gravou Otelo em quatro ocasiões. Duas dela sôb a regência de James Levine, em 76 e 96. Na primeira, ele era muito inexperiente, na segunda, excessivamente inteligente. O meio-termo seria a filmegem da ópera com direção de Franco Zeffirelli, a ser realizada em locações na Apúlia (Itália), quando um forte terremoto atingiu a Cidade do México, onde boa parte de sua família vivia. Amigos e parentes ficaram feridos e desabrigados. Domingo cancelou um ano de compromissos para arrecadar ajuda. Eu o ví no set de filmagem - um castelo em ruínas em Barletta, sul da Itália. Preocupado e distraído, sua raiva incontrolável foi canalizada quando as câmeras se voltaram para ele, na fúria do herói conquistador, cujo amor pela esposa é transtornado pelo vírus do ciúme. O resto do elenco ficou comprometido. Katia Ricciarelli era uma celebridade nacional, casada com o mais famoso apresentador de programas de entrevistas da TV italiana. Justino Diaz era um velho amigo de Domingo. Nenhum dos dois teve capacidade para trazer Desdêmona e Iago à vida, como o tiveram, por exemplo, Rysanek e Gobbi, que gravaram Otelo para a EMI, sob a regência de Serafin.
Mas Domingo foi um irresistível Otelo. Ao anoitecer, comtemplando o transparente Adriático do alto da fortaleza, ou no calabouço, com o furtivo Iago, sua presença inspira respeito; é um homem transformado, transcendendo suas preocupações pessoais. Seu grito na segunda cena, "Abasso le spade!" fervilha de desespero heróico. Fora do set, ele ficava o tempo todo em contato telefônico com o México. A gravação de áudio foi uma sequëncia de problemas. Carlos Kleiber se afastou por discordar da escalação do elenco. Seu substituto, Maazel, tentou persuadir Zeffirelli a lhe permitir a inclusão de trechos de música incidental moura que ele, só por boa vontade, havia composto. O diretor disse a Ricciarelli que ele estava gorda demais. A EMI, na última hora, escalou o engenheiro de som para fazer uma série de gravações de clássicos do Rock em Londres. Apesar de todos os percalços, a gravação ficou perfeita. "A cena da ameia do castelo com Domingo e Ricciarelli foi absolutamente bela, e eu nunca ouvi um coro de ópera como o do Scala", disse o eng. de som Tony Faulkner.
Domingo escreveu uma nota para a capa do disco, expressando a opinião de que Otelo "é para cantores adultos". O tiro foi dirigido diretamente para o diafragma brincalhão de Pavarotti.

Bach: Missa em Si Menor - Coro Monteverdi - English Baroque Soloists - John Eliot Gardiner - DG - Londres

A música antiga foi uma revolução que ultrapassa a nomenclatura. As pessoas que tocavam instrumentos de época e estudavam os textos originais eram, logo no início, democráticas até o ponto da anarquia, discutindo durante os ensaios e continuando a batalha nos pubs e nas publicações espacializadas. O regente, historicamente o promotor da unidade, tornou-se um árbitro entre os especialistas nesses instrumentos, e praticamente o "primus inter pares" (primeiro entre iguais). Os solistas foram reduzidos ao mesmo nível dos músicos do grupo.
O igualitarismo do movimento foi um anátema para muitos, numa indústria que vivia e morria baseada no sistema do estrelato. Contudo, à medida que a revolução reunia forças, especialmente entre ouvintes jovens e novos compradores, os selos foram forçados a anotar e registrar o impensável: uma grande interpretação clássica sem nenhuma estrela. A versão de 1985 da Missa em Si Menor, por John Eliot Gardiner, veio para quebrar o gelo da indústria fonográfica.
Gardiner era um homem empreendedor, formando grupos e conseguindo trabalho para sua fábrica musical. Mas era também um facilitador, dando oportunidades a excelentes musicistas que, de outra forma, talvez nunca tivessem encontrado lugar no disco. Todos os solos nesta gravação são cantados com brilho pelo Coro Monteverdi; Nancy Argenta e Michael chance estão à frente de um grupo cheio de vontade e sem falhas. A orquestra, com 28 componentes, é liderada pela primeira esposa de Gardiner, Elizabeth Wilcock. Os andamentos são quase duas vezes mais rápidos do que os de Karajan, transformando a atmosfera de sentenciosa em infecciosa, praticamente desde o primeiro acorde. O carro-chefe é o coro Qui Tollis, leve e arejado, embora espiritualmente elevado. Esta gravação foi verdadeiramente revolucionária, dando a impressão de que qualquer um poderia tocar e cantar Bach - e, de fato, todos deveriam fazê-lo.

Mozart: Concerto para Clarineta - Academy of Ancient Music - Christopher Hogwood - Decca - Londres, 1980.

Christopher Hogwood foi a face aceitável da música antiga, um regente que jamais permitiu que dogmas de autenticidade pairassem acima da musicalidade inerente. Quando ele convenceu a Decca a deixá-lo gravar praticamente toda a obra orquestral de Mozart, supôs-se que nada que ele fizesse espantaria os aficcionados habituais, que conheciam Mozart de trás para a frente.
O Concerto para Clarineta deixou-os morrendo de medo. Hogwood e seu solista, Antony Pay, partiram da idéia de que a obra não foi originalmente destinada à clarineta, um instrumento relativamente novo e agudo que ainda estava entrando em uso em 1789. O primeiro movimento foi escrito especificamente para o basset horn, em sol maior, e , dez semanas antes de sua morte, contou à esposa, Contanze, que estava orquestrando o rondó do finale para a Casset Clarinet, de Anton Stadler, que tinha uma extensão grave. Tocar a peça com a clarineta moderna seria, na opinião de Hogwood, anômalo até as raias do ridículo.
Pay tocou o concerto de forma doce e grave. Em mãos menos competentes, o basset horn soa como um rosnado, mas o som de Pay foi tão fluente, e o acompanhamento de Hogwood tão bem realizado, que esta versão acabou por estabelecer não só uma nova apreciação de uma peça já muito amada, mas também uma nova tolerância das lojas de discos para com a música antiga como um todo.

Mahler: Sinfonia nº10 - Orquestra Sinfônica de Bournemouth - Simon Ratle - EMI - Southampton

Em 1974 um garoto de 19 anos venceu um concurso de regência patrocinado por uma indústria de cigarros. O prêmio era reger, durante dois anos, uma orquestra do litoral. "Durante este período, eu considerei seriamente a idéia de desistir da regência", disse Ratle, mas já no final deste prazo ele conseguiu fazer uma gravação para a EMI.
Ratle escolheu a última sinfonia de Mahler, escrita já no leito de morte, uma obra fragmentária que foi concluída pelo produtor da BBC, Derick Cooke, e pelo regente Bertold Goldschimdt. A empreitada deles foi denunciada por Bruno Walter, discípulo do compositor, e ignorada por Bernstein e por Kubelik, que estavam gravando pela primeira vez ciclos completos das sinfonias.
Ratle, uma década mais tarde, estudou a sinfonia nº10 com Goldschimdt e desenvolveu os esboços com os compositores Colin e David Matthews. À frente de uma orquestra que tinha tudo, mas minava sua confiança, ele construiu uma versão monumentalmente segura e surpreendentemente bem executada da luta de um compositor contra as forças do amor, da falta de fé e da morte. O Adágio de abertura é rigidamente controlado, de modo a evitar a autopiedade; os dois Scherzos são febris, e o "Purgatório", inadequadamente ominoso. Mas o finale, com seus pesados ritmos de morte, é terrivelmente convincente, uma apoteose de qualidades para a mensagem de Mahler. A gravação se revelou crucial para a carreira de Ratle. Dentro de um ano ele foi nomeado regente principal em Birmingham, uma orquestra que ele moldou segundo sua personalidade jovial e eclética. A Décima de Mahler foi o trabalho que ele citou quando a Filarmônica de Berlim o convidou para reger um concerto em 1987. Os músicos vetaram a peça, por conta de sua litigiosidade, e Ratle recuou. Finalmente, ele conseguiu ensaiar a obra em 1996. Durante todo o ensaio, os músicos murmuravam: "Isso é horrível...isso não é Mahler". O concerto mudou a mente de todos. Três anos mais tarde os músicos escolheram Ratle como diretor musical em Berlim.

domingo, 12 de julho de 2009

Berg: Lulu - Teresa Stratas - Orquestra da Ópera de Paris - Pierre Boulez - DG - Paris

Alban Berg morreu de infecção no sangue em Dezembro de 1935, aos cinquenta anos, e com sua segunda ópera inacabada (e irrealizável, segundo sua esposa). Dois atos foram encenados em Zurique em 1937, mas Helene Berg jamais permitiu, enquanto viveu, que alguém visse os esboços para o final no qual Lulu, a "material girl" original, é morta por Jack, O Estripador, em meio a cenas de decadência sem precedentes.
A reticência de Helene foi provocada pela descoberta de um terrível segredo. Berg, enquanto escrevia Lulu (dentre outras obras) teve um tórrido romance com uma mulher casada em Praga. A partitura é cheia de sugestões do amor físico entre eles - as notas representando as inicias do compositor e as de Hanna Fuchs Robettin se entrelaçam em trechos estratégicos. Helene, sentindo-se traída conjugal e criativamente, trancou os esboços no cofre de um editor e, em seu testamento, proibiu terminantemente qualquer tentativa de expansão do terceiro ato. Os editores tinham outras idéias. Eles mostraram os esboços, bem antes da morte de Helene, ao competente compositor austríaco Friedrich Cerha, que completou a ópera semanas após o funeral dela. O sucessor de Helene fez uma tímida tentativa de defender sua vontade, mas acabou concordando com a promessa dos editores de que a versão em dois atos "continuaria disponível" ao lado da nova versão. A última obra-prima de Berg finalmente foi encenada em Paris em 24 de Fevereiro de 1979, e a gravação ganhou todos os prêmios de ópera naquele ano.
Lulu, hipnoticamente recriada pela provocativa Teresa Stratas, revelou-se como uma parábola da feminilidade do século XX, dividida entre desejos inconciliáveis de status, segurança e satisfação erótica - sempre uma amante, nunca uma esposa - sendo que nenhum homem está seguro perto dela. Foi a melhor de todas as interpretações da vida da soprano greco-canadense. "Eu estava com febre e tomava cortisona", recorda ela. "Eu não queria cantar, não podia cantar...fiz o que tinha que fazer: fiquei lá e cantei". Ela foi Lulu na essência.
O elenco de apoio foi notavelmente escolhido (Yvonne Minton, Hanna Schwarz, Robert Tear, Franz Mazura e Kenneth Riegel) e o regente, Pierre Boulez, manteve sob controle um tenso erotismo marcado por terríveis pressentimentos, a música mais sexy de sua vida. Este disco estabeleceu a versão em três atos de Lulu como um padrão universal, e sua conclusão, como uma das mais sombrias cenas vistas num palco de ópera em todos os tempos.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Holst: Os Planetas - Orquestra Filarmônica de Londres - Sir Adrian Boult - EMI - Maio-Julho de 1978.

Seis semanas antes do final da Primeira Guerra Mundial, um jovem regente, Adrian Boult, estava curvado sobre uma partitura quando Gustav Holst entrou na sala dizendo que um amigo generoso havia conseguido para ele a orquestra e o coro do Queen's Hall para uma apresentação na manhã de domingo. "Nós vamos fazer Os Planetas e você tem que reger", exclamou o compositor. As partes orquestrais foram copiadas em sala de aula por alunas da Escola St. Paul, duas das quais tocaram a peça a quatro mãos para um não totalmente convencido Boult, que lutava para aprendê-la em poucos dias.
A estréia, em 29 de Setembro de 1918, levou alguns dos melhores músicos de Londres até uma sala vazia que estava sendo preparada para uma apresentação noturna. O grande ciclo celestial de Holst não exigia conhecimento astrológico. As faxineiras que limpavam os corredores largaram as vassouras em "Júpiter" e começaram a dançar. Em "Netuno", os músicos disseram ter ouvido sons de outra galáxia, com o acorde do coro feminino, que desvanece gradualmente, representando o último grau do etéreo. Os Planetas tornou-se a obra orquestral britânica mais executada e uma amostra espetacular para os aparelhos de alta-fidelidade. "Você se cobriu de glória", disse Holst, após a primeira apresentação desta obra-prima, e Boult continuou a regê-la por mais seis décadas. Ele gravou-a cinco vezes, a última e mais bem-sucedida alguns meses antes de completar noventa anos. Havia sempre certa impassividade naquele maestro inglês esbelto, de bigode espetado, que parecia o oposto da paixão. Boult, contudo, aprendera com seu mentor Arthur Nikisah como extrair um clímax maciço de um movimento curto, e suas variações de luz e sombra são literalmente de outro mundo. Cada planeta, em sua visão, exibe uma coloração distinta, e os ecos da guerra em "Marte" e "Vênus" não poderiam ser mais explicitos, refletindo o período turbulento que eles haviam vivido. Já "Saturno, o portador da velhice" não é um patético hóspede num asilo, mas um homem digno que viveu seu tempo intensamente e é capaz de se enfurecer ao vê-lo se apagar.
Em CD, a EMI juntou Os Planetas com uma gravação de 1970 das Variações Enigma, de Elgar, com a Sinfônica de Londres, a mais convincente gravação desta obra desde a do compositor e a de Toscanini. O par foi lançado como parte de uma série intitulada, sem exagero, "Grandes Gravações do Século". Boult, a última ligação com o renascimento musical inglês, morreu aos 94 anos, em 1983.

olst: Suítes Para Instrumentos de Sopro - Sopros Sinfônicos de Cleveland - Frederick Fennell - Telarc

A obra "Os Planetas" de Gustav Holst foi um presente para a indústria fonográfica. A grande suíte astrológica, que teve sua estréia mundial durante as últimas semanas da Primeira Guerra Mundial, foi usada como peça de ilustração para quaisquer inovações tecnológicas surgidas desde a gravação elétrica. Holst, um professor de música na Escola para Meninas de St Paul em Hammersmith, no oeste de Londres, ficou espantado com seu sucesso, pois se preocupava muito mais com a complexidade da textura do que com os efeitos espetaculares.
Homem humilde, de gostos simples, Holst adorava escrever suítes para bandas militares de sopros, retrabalhando melodias folclóricas com suave colorido rural e delicados contrastes de luz e sombra. As suítes eram raramente tocadas fora do âmbito das cidades mineiras inglesas, até que aconteceu uma mudança nos desígnios da gravação que lhes abriu as portas de um futuro brilhante. Ao final dos anos 1970, a invenção de Edison estava se tornando obsoleta. Os discos ficavam arranhados com facilidade excessiva, e qualquer sujeira superficial era amplificada pela aparelhagem eletrônica cada vez mais potente. Os cientistas procuravam um modo de evitar o contato da agulha através da conversão do som em dígitos de computador, lidos por um feixe de luz laser. Um professor americano, Thomas Stockham, patenteou uma máquina chamada Soundstream e testou-a no Festival de Ópera de Santa Fé. Dois cidadãos de Cleveland, Jack Renner e Robert Woods, pediram-na emprestada para o que seria a primeira gravação profissional que faziam, e tiveram o descaramento de pedir ao professor que a adaptasse às necessidades deles. Stockham, gentilmente, concordou, e o aparelho foi testado nas seções de palhetas, metais e percussão da Orquestra de Cleveland.
Os manuscritos originais das suítes de Holst reapareceram recentemente, após ficarem desaparecidos por décadas, e descobriu-se então que continham antecipações dos grandes temas de "Os Planetas". Os músicos de Cleveland tocaram com suavidade sedosa e uma gama dinâmica delicadamente calibrada, do pianíssimo ao fortíssimo, deixando maravilhados os ouvidos acostumados à compressão do LP. Este foi o primeiro lançamento digital em LP, Um tira-gosto para o que seria servido a seguir. Os críticos se entusiasmaram com a redução dos chiados e estalos e os fabricantes seguiram adiante com a pesquisa do som digital. Cinco anos se passariam até que o CD Mostrasse toda a vantagem do som digital, mas esta gravação foi o arauto, tal como Mercúrio entre os Planetas, o mensageiro da boa sorte.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Janácek: Katya Kabanova Elisabeth Söderström, Petr Dvorsky - Orquestra Filarmônica de Viena - Charles Mackerras - Decca - Viena

O australiano Charles Mackerras assistiu pela primeira vez a uma ópera de Janácek, chamada Katya Kabanova, ainda como estudante, com uma bolsa do British Council, em Praga, em Outubro de 1947. Ele a estreou no Reino Unido em 1951, em Sadler's Wells, num evento que apresentou Janácek ao público inglês, um quarto de século após a morte do compositor. Rafael kubelik, então diretor do Covent Garden, regeu em seguida "Jenufa", que obteve garnde sucesso. Leos Janácek foi imediatamnete reconhecido como um grande criador do séc. XX, mas a indústria de gravação não estava interessada, julgando que os novos fãs do compositor ficariam satisfeitos com as gravações de má qualidade importadas da Supraphon.
Outro quarto de século passou, Janácek fazia parte do repertório das orquestras em todo o mundo, até que por fim uma gravadora resolveu encomendar um ciclo das suas obras. Mackerras, agora diretor musical da Ópera Nacional Inglesa, foi enviado pela Decca a Viena, onde os músicos da Filarmônica insistiram em que jamais haviam ouvido falar dele.
Foi escalado um elenco econômico, praticamente todo tcheco e desconhecido fora de seu país, com exceção da sueca Söderström, que tinha cantado o papel-título em Glydebourne. Apesar dessas dificuldades, as sessões foram harmoniosas. O duro drama eslavo de uma mulher que encontra o amor fora do casamento, mas não consegue suportar as consequëncias, prende a atenção de qualquer um. Söderström, filha de russos, canta luminosamente, e Petr Dvorsky faz o amante digno de se morrer por ele. Algumas pessoas na Decca duvidaram, mas Janácek estava criando raízes nos palcos americanos (embora Katya tenha sido cantada no Met apenas em 1991) e Mackerras foi liberado para gravar o restante das óperas deste ciclo desbravador e premiado.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Strictly for the Birds - Yehudi Menuhin - Stéphane Grapelli - EMI - Londres, 21-23 de Maio de 1975.

Muito antes que alguém sugerisse o termo "crossover", o violinista clássico mais famoso do mundo se encontrou com o mais importante violinista de Jazz num estúdio de televisão da BBC para o Especial de Natal de Michael Parkisson, em 1971. Nenhum deles estava à vontade. Menuhin temia que Grapelli o considerasse "um colega inútil, que nunca tinha tocado Jazz e só conseguia se lembrar de uma melodia popular". Grapelli, sem formação acadêmica, preocupava-se com "o que Menuhin poderia fazer com a minha técnica".
"Antes de começar a tocar", lembra o produtor John Mordler, "Yehudi costumava fazer todo tipo de exercício de yoga". Grapelli olhou-o pasmado. "Eu vou fazer o mesmo que Le Père Menuhin", disse, ensaiando uma espécie de dança do ventre. "Talvez ajude!" Com o gelo quebrado assim, eles pegaram seus violinos e começaram a testar um ao outro.
Grapelli tocava livremente e sem partitura. "Stephane", disse Mordler, "tinha essa maneira maravilhosa de alongar ou encurtar notas e compassos e, de tempo em tempo, atacar uma nota ligeiramente mais baixa a então deslizar para cima até chegar à afinação correta. Yehudi não conseguia chegar ao mesmo grau de liberdade. Stéphane tocava geralmente de ouvido, mas Yehudi, pouco familiarizado com muitas das peças, trazia sua parte escrita, inclusive as "improvisações", cujo estilo, de outra forma, teria sido um tanto inacessível para ele". O repertório incluiu música da infância de ambos, nos anos 1920 e 1930 - Gershwin, Jerome Kern, Cole Porter. A simbiose entre eles veio mais da contemporaneidade do que do estilo. Os glissandos ofenderam os puristas, mas, quando uma dupla de violinistas de primeira linha toca "Nightingale in Berkeley Square", o trânsito pára, e as patrulhas do gênero são forçadas a desmanchar suas barreiras artificiais. De uma maneira ou de outra, este disco estabeleceu os parâmetros para os conluios interculturais. Grapelli ficou tão impressionado com a experiência que escreveu e tocou um novo "Minueto para Menuhin".
Para Menuhin, o disco foi apenas outro sucesso de vendas em uma vida cheia de triunfos. Para Grapelli, ele marcou a diferença entre a fome e a bonança. "Estas gravações criaram uma nova expectativa de vida para Stéphane", disse Mordler. "Ele me disse que essa foi a primeira vez em sua longa carreira em que um disco seu vendia aos milhares, e ele se viu, repentinamente, recebendo mais direitos autorais do que jamais sonhara. Por isso, fez questão de que o disco contivesse algumas de suas próprias composições. Normalmente, ele as escrevia no táxi, a caminho do estúdio". Uma dessas composições foi intitulada "Johnny aime", com a segunda palavra pronunciada como "M", um tributo disfarçado ao seu produtor de estúdio, que passou o resto de sua carreira como diretor da Ópera de Monte Carlo.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Brahms: Sonatas para Viola e Piano - Pinchas Zukerman - Daniel Barenboim - DG - NY, Novembro de 1974.

Os contratos de exclusividade das gravadoras excluiam qualquer possibilidade de lançamento de discos do Kosher Nostra, um grupo de destacados músicos, praticamente todos judeus, que gerou exitação no final da década de 60, em concertos no palco e na televisão, numa série de documentários produzidos por Christopher Nupen. Uma execuçaõ célebre do quinteto "A Truta", de Schubert, com Barenboim (piano) sua esposa Jacqueline du Pré (cello), os israelenses Itzak Perlman (violino) e Pinchas Zuckerman (viola) e o regente indiano Zubin Mehta (baixo), nunca foi lançado em disco, embora exista em milhões de bancos de memória visuais e auditivos.
Esta amizade multilateral pode ser ouvida apenas em condições desfavoráveis: ou muito pouco, ou na maioria das vezes gravada tarde demais para captar a excitação do concerto. Uma exceção é este encontro pouco usual com Brahms, tocado no instrumento errado e talvez no continente errado, uma vez que Brahms nunca colocou os pés na América. Barenboim estava em NY ao mesmo tempo que Zukerman, que, igualmente adepto da viola e do violino, sugeriu que eles preenchessem um dia livre com os últimos trabalhos de Brahms, um par de sonatas escritas para clarineta, mas marcadas pelo compositor como igualmente executáveis na viola. A Deustche Grammophon, que preparava um ciclo em homenagem ao centenário de Brahms, decidiu levar adiante o projeto. Em outras mãos, teria sido apenas mais um disco.
Mas a vida de Barenboim tinha sido arrasada pela trágica doença de sua esposa, e sua execução tem um caráter nervoso, espiritual, que provocou em Zukerman o ansioso desejo de tranqülizá-lo, como no final do primeiro movimento da Sonata em Fá Menor, que eles terminam em um trêmulo andamento decrescente. O Andante transforma-se num ato de encorajamento mútuo, levado num compasso que evita a pressão, como numa revigorante conversa. Depois disso, eles começam a se divertir, dois rapazes em NY com o mundo a seus pés, esquecidos dos perigos da mortalidade. A sonata em Mi Bemol Maior, mais amável e langorosa no início, torna-se uma corrida até o final, uma emocionante conclusão para a vida de um grande compositor. O disco foi produzido por Gunther Breest, um futuro grande nome da indústria da gravação, e tudo a respeito dele parece ser como deveria.

domingo, 5 de julho de 2009

Beethoven: Sinfonia nº5 Orquestra Filarmônica de Viena - Carlos Kleiber - DG- Viena, Março/Abril de 1974.

O destino bate à porta. A Quinta Sinfonia de Beethoven tornou-se um símbolo de liberdade e resistência a partir do dia em que foi escrita. Foi a primeira sinfonia gravada na íntegra (por Arthur Nikish e a Filarmônica de Berlim em Novembro de 1913) e está entre as mais executadas. De uma estante com mais de cem gravações, que vão do portentoso ao anoréxico, é absurdo chamar qualquer uma de definitiva, embora esta seja considerada pela maioria dos regentes como um marco.
Carlos Kleiber tinha sua maneira própria de ser: só trabalhava quando sua geladeira estava vazia, e não raro abandonava um trabalho por causa de um desentendimento sem importância. Ofuscado pelo pai autoritário, Erich Kleiber, que dirigiu a Ópera Estatal de Berlim nos anos 20 e deixou algumas gravações notáveis, Carlos se restringiu ao repertório paterno, buscando superar Erich em suas melhores interpretações. Erich Kleiber havia feito uma famosa e controlada gravação da Quinta para a Decca com a Orquestra do Concertgebouw de Amsterdã em 1952, traduzindo as traiçoeiras quatro notas iniciais de forma tão convincente que nenhum outro fraseado parecia possível. Carlos decidiu superar esta versão. Seu andamento é mais rápido - seis pontos no metrônomo - e suas fermatas, muito mais flexíveis. Sua interpretação é cheia de presságios, crispada de inominável terror e selvageria maníaca. O movimento lento é calmo, embora ainda tenso, e é apenas no Finale que Kleiber permite uma possibilidade de esperança. A Filarmônica de Viena, cansada da segurança rotineira, segue-o ardentemente como se fosse uma tropa em batalha até a conclusão, que mantém a dúvida até o fim.
As sessões se arrastaram durante dois meses, enquanto Kleiber estava em Viena estudando Tristão e Isolda. Nos ensaios, seu humor se alternava da frustração furiosa à preocupação pessoal, levando os músicos ao limite, ao mesmo tempo que os mimava com sorrisos e conversas durante as pausas para o café. No final, eles estavam preparados para dar-lhe tudo de sí. O resultado é uma gravação reverenciada por todos, que superou a do pai e ocupa uma posição singular na carreira do prodigioso filho.

sábado, 4 de julho de 2009

Drumming - Six Pianos - Music for Mallet Instruments, Voice and organ - Steve Reich - DG - Hamburg

O minimalismo foi uma moda na costa oeste dos EUA nos anos 60, baseado em práticas orientais que envolviam músicos profissionais em grupos tocando intermináveis equivalentes do vocábulo "Om". Os pioneiros, Terry Riley e Lamonte Young, eram personalidades da contracultura, incapazes de dialogar com os executivos das gravadoras de música clássica da época. "Eu raramente fiz música", disse Riley, "sem ser apedrejado".
A fase seguinte do minimalismo foi liderada por Philip Glass, um motorista de táxi de NY que sonhava com óperas, e por Steve Reich, um compositor multifacetado que foi além da imersão hipnótica em ritmos variantes e passou a estudar as culturas indígenas. Reich retornou de Gana com Drumming, dos grupos de gamelões da Califórnia, trouxe a "Música para Instrumentos com Baqueta, Vozes e Órgão. Drumming obteve uma grande ovação* no Museu de Arte Moderna de NY e um amigo alemão do compositor alertou a Deustche Grammophon. A DG, indo contra o seu perfil conservador, levou o grupo de Reich para Hamburgo em Janeiro de 1974, em meio a um sombrio inverno quando a Alemanha foi assolada pelo terrorismo urbano do grupo esquerdista Baader-Meinhof, por escândalos de espionagem e pela incerteza artística. Os músicos de Reich, entre eles os compositores Cornelius Cardew e Joan LaBarbara, tocaram os tambores e mudaram o mundo. O álbum de três LPs, lançado no verão, quebrou a hegemonia atonalista que havia dominado a música contemporânea desde 1945. De forma mais construtiva, ele também questionou os pontos de referência ocidentais da música clássica, ao introduzir figuras de imagem e ritmos de outras culturas. Para o ouvido inocente, a música de Reich é monótona, mas a audição prolongada revela mudanças microscópicas na textura e no "momentum", sendo o início de uma exploração que levou o compositor às complexidades textuais e espirituais de "Different Trains" e "Tehillim". A DG só voltou a fazer uma gravação de música minimalista vinte anos depois, mas este álbum quebrou o gelo modernista e derrubou a prolongada hegemonia do ascetismo acadêmico.

*No original, "uma ovação de 90 minutos", mas me parece, aliás, obviamente, um erro de revisão.

Bach: Sonatas e Partitas para Violino Solo - Nathan Milstein - DG - Londres, Fev. e Set. de 1973.

Certas gravações são definitivas no sentido em que desencorajam quaisquer novas tentativas. Mais de um violinista eminente declarou que jamais gravaria as sonatas e partitas de Bach depois de ouvir Milstein pela DG, de tão resplandecente beleza e tão intimidante autoridade.
Milstein foi o primeiro músico a sair legalmente da Rússia sob o comunismo, quando obteve permissão para viajar para o exterior, juntamente com o amigo Vladimir Horowitz, ambos como embaixadores do novo regime. Ao passo que o pianista se tornou um astro da noite para o dia, a visibilidade de Milstein foi modesta, e sua virtuosidade, discreta. Homem de curiosidade ilimitada, ele poderia ser encontrado, uma hora antes de um recital, numa livraria ou café, pesquisando um assunto totalmente diverso.
Rachmaninov, ao ouvi-lo tocar a "Partita em Mi Maior" de Bach, ficou tão empolgado com o leque de expressão que Milstein era capaz de extrair de uma única linha melódica, que transcreveu três movimentos da peça em uma suíte para piano para seu próprio desfrute. A abordagem de Milstein era despretensiosamente comprometida, como se ele tivesse algo de importante a dizer ao ouvinte, mas sem segurar a atenção deste um momento sequer a mais do que o necessário. Cada concerto era, para Milstein, um ato de reconsagração. "Eu nunca me apresentei mais do que trinta vezes por ano em toda a minha vida", contou ele ao autor deste livro. "Eu tinha a tarefa de me renovar entre os recitais, de trazer algo de novo para o meu público." Eu tive a oportunidade de ouvi-lo tocar com imaculada precisão e sem nenhum exibicionismo bem depois do seu octagésimo aniversário.
Gravar deixava-o nervoso, e ele desistiu de fazê-lo na meia-idade, concordando nesta gravação em tocar Bach em longos trechos, o que não permitiu que fossem editados ou melhorados. Ele tocava como falava, como numa conversa, e com os olhos brilhando, sempre atento às possibilidades que uma nova inflexão poderia trazer ao significado da vida. O início do Adágio da Sonata em Sol Menor é, nas mãos de Milstein, um mundo, e algo verdadeiramente irrepetível.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Canto gregoriano - Monges do Mosteiro Beneditino de Santo Domingo de Silos - EMI - Burgos, Março de 1973

Numa tarde quente em Madrid, no final dos anos 80, enquanto motoristas presos ao engarrafamento ferviam ao volante, surgiu um som no rádio que acalmou a todos. Algum DJ brilhante, atento ao caos no trânsito, pôs para tocar um velho LP de um grupo de monges em suas devoções diárias. Sua intervenção causou uma queda acentuada na pressão arterial das avenidas e um sorriso beatífico nos principais cruzamentos. A EMI adquiriu a gravação em 1993 e colocou-a em casas noturnas para ser tocada no final das festas, mandando os jovens alcoolizados de volta para casa envoltos numa nuvem espiritual. "Canto Gregoriano" vendeu um milhão de discos apenas em um mês nos EUA. Três em cada cinco discos foram vendidos para pessoas com menos de 25 anos. Os monges receberam uma oferta de 7,5 milhões de dólares por uma nova gravação.
O que tocou os corações em todo o mundo foi a etérea imaterialidade do isolado mundo monástico e alguma coisa de primitivo na música que os monges cantavam. A padronização do canto da Igreja Católica é atribuída ao papa Gregório I, que morreu no ano de 604, mas parece improvável que ele tenha escrito tanto num papado de apenas 14 anos. Alguns ligam as melodias a uma fonte mais antiga: o Templo de Salomão, em Jerusalém. Se eles estão certos, os ritmos de corrida do final do séc. XX foram milagrosamente desacelerados por alguns dos sons mais antigos da comunhão do Homem com o Criador.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Schubert: Die Schöne Müllerin (A Bela Moleira) - Dietrich Fischer-Dieskau - Gerald Moore, piano - DG -Hamburg

Esqueça o cantor por um momento. Esta gravação começa e termina com o pianista. Am i Too Loud? (Estou Tocando Alto Demais?) é o título das memórias de Gerald Moore. Aos vinte e poucos anos esse garoto de Watford (Dakota do Norte) entrou num estúdio da HMV - o ano era 1921- e, quando deu por si estava acompanhando Pau Casals e Elisabeth Schumann. Ao longo do tempo, ele ficou mais agressivo. The Unashamed Accompanist, seu primeiro livro, colocou para o público a questão da parceria desigual que existe entre os recitalistas e os pianistas.
Moore trabalhou com todos os solistas famosos, mas o relacionamento mais importante foi com Dietrich Fischer-Dieskau, que, mais do que qualquer outro cantor, fez do Lied o centro de sua vida, e do ciclo de Lieder, um acessório metropolitano. O refinado barítono alemão encontrou seu parceiro ideal em Moore, homem que falava sem rodeios, enfrentava a música de frente e ia ao cinema após um ensaio particularmente difícil. Moore não dava nenhuma colher de chá ao seu famoso parceiro. Quando Fischer esqueceu a letra em "Auf der Bruck" e olhou para o piano implorando auxílio, Moore trotando num rítmo cavalar, disse, em voz baixa: "Sinto muito, estou muito ocupado cavalgando." Por trás do exterior duro, ele escondia uma sensibilidade aguda para o equilíbrio de uma frase musical. Moore resolveu se aposentar em 1968 - apaziguado por uma homenagem de Elizabeth Schwarzkopf e Victoria de Los Angeles cantando o "Dueto dos Gatos" de Rossini, em concerto de gala no Royal Festival Hall, mas Fischer-Dieskau o convenceu a retornar ao estúdio para gravar pela última vez um dos ciclos de Schubert (O canto de cisne deles, como ele próprio definiu). Moore tocou com espontaneidade dinâmica, e Fischer Dieskau, que havia evitado Schubert por muitos anos, cantou como se cada verso fosse uma surpresa. Às vezes, como em "Danksagung An Den Bach" (Ação de Graças no Riacho), pode-se praticamente ouvir dois corações pulsando em harmonia. "O ritmo, que (Gerald) particularmente elogiava em mim, era uma de suas principais virtudes", notou Fischer. "Ele caminhava de mãos dadas com seu parceiro, cujo suporte de métrica e respiração nunca era sacrificado. Ele nunca se perdia em detalhes, seguindo até o final a grande linha iniciada pelo compositor". Nesta ocasião, sabendo que eles nunca mais tocariam juntos, e aliviados da ansiedade das carreiras, a dupla soltou as rédeas do impulso e criou a interpretação de suas vidas.

terça-feira, 30 de junho de 2009

Dvorák: Sinfonia do Novo Mundo-Sinfonia nº8 - Orquestra Filarmônica de Berlim - Rafael Kubelik - DG -Berlim, Igreja de Jesus Cristo

Em 1948, pouco depois de os comunistas atirarem Jan Masaryk por uma janela do edifício do Ministério do Exterior, Rafael Kubelik fugiu de Praga com a família, sabendo que nunca mais poderia retornar. O nome Kubelik era muito conhecido. Seu pai, Jan, fora um violinista famoso internacionalmente, que retornou para morrer entre sua gente, sob a acupação nazista. Rafael foi um regente maravilhosamente sensível, muito estimado pelos músicos de Praga e de Brno, e mais tarde em todo o mundo.
Em busca de asilo político, ele passou momentos difíceis em Chicago e no Covent Garden de Londres, até encontrar uma orquestra de alto nível internacional na Rádio Bávara e iniciar uma carreira de gravações na Deustche Grammophon. Homem alto e elegante, ele tinha uma enganadora habilidade de obter sonoridades quentes das orquestras, às vezes à custa da clareza dos ataques. Seu ciclo de Mahler erra para o lado da gentileza, e seu Brahms, embora belamente colorido, evita as profundezas mais sombrias, como se não quisesse enfrentar a angústia da audiência. Na música tcheca, entretanto, ele se desprendeu de todas as amarras e deu vazão à saudade. Nas horas mais escuras da Guerra fria ele declarou publicamente que gostaria de ver os tchecos recuperarem a sua liberdade e levou adiante a herança do seu país com fervor messiânico. A Nona Sinfonia de Dvorák, "Do Novo Mundo", escrita nos Estados Unidos com saudade da terra natal, adquire, nas mãos de Kubelik, uma urgência, um senso de passado conectado ao futuro, que suprime o tempo presente. Com a Filarmônica de Berlim, os meninos-prodígio de Karajan, ele extraiu uma execução de alto risco e reatividade explosiva dos músicos, que tocaram sentados na beirada das cadeiras. O primeiro flautista, o então jovem James Galway, repete o tema de abertura com energia contida, como se fosse explodir, caso tivesse que esperar mais um instante. As duas últimas sinfonias foram lançadas como as primeiras de um ciclo sinfônico de Dvorák pela DG (István Kertész estava fazendo outro pela Decca).
Kubelik se aposentou por problemas de artrite, em meados dos anos 80. Quando, porém, o comunismo soviético desmoronou, em 1989, ele voltou para a sua terra, curvado pela idade e pela dor, para reger "Ma Vlast" (Minha Terra) de Smetana. A última peça que ele regeu, antes de morrer em 1996, foi a Sinfonia do Novo Mundo.

Haydn: Sinfonias Parisienses -Philarmonia Hungarica - Antal Dorati - Decca - Marl, Alemanha, Igreja de São Bonifácio, 1971

Entre aqueles que fugiram da Hungria após a invasão soviética, em 1956, estavam centenas de músicos. Oitenta deles formaram uma orquestra em Viena, mas lutavam para encontrar trabalho. O compositor Nicolas Nabokov, sobrinho do escritor, conseguiu patrocínio das Fundações Rockefeller e Ford e convenceu Antal Dorati a reger o conjunto. Dorati, de volta à Europa depois de um longo período regendo orquestras americanas, estava tentando convencer a Decca a deixá-lo gravar as 104 sinfonias do até então pouco comercial Joseph Haydn. Sua proposta coincidiu com a difícil situação dos refugiados; desse modo, um dos maiores projetos de gravação teve lugar.
A pequena cidade de Marl, na Vestfália, ofereceu residência à orquestra, e a Igreja de São Bonifácio tinha uma acústica transparente. Muitas da sinfonias foram gravadas pela primeira vez, e as execuções, embora usando instrumentos modernos, seguiram as recentes edições do biógrafo de Haydn, H.C. Robbins Landon. Os andamentos, leves e arejados, são completamente diversos dos andamentos lúgubres que eram a norma das orquestras alemãs e a substância despretensiosa das sinfonias é salutarmente diferente do peso de expectativa que as obras de Mozart e Beethoven carregam. O fato de uma sinfonia se chamar O Urso, e outra, A Galinha, e ainda outra, A Rainha, indica certa irreverência da parte do compositor. Mais frívolas e menos conhecidas que as Sinfonias Londrinas, que vieram depois, as sinfonias parisienses conquistaram os ouvintes através do disco e voltaram ao repertório de concerto por algum tempo. Uma delas, a Sinfonia nº86 em Ré Maior, destrói a identidade tonal de maneira a sugerir que o compositor testava o ouvido dos seus músicos e do público. Dorati e os húngaros se divertiram muito.
Na última sessão de gravação, em Dezembro de 1972, Dorati anunciou a venda de meio milhão de discos. Esse número rapidamente quadruplicou, tornando-se o maior sucesso da Decca depois do Anel. Aquela que já havia sido uma orquestra de sem-tetos gozou da fama de um dos melhores grupos europeus -até a Guerra Fria terminar e o governo alemão acabar com o subsídio, o que resultou na dissolução da grupo.

domingo, 28 de junho de 2009

Magnificathy: As Muitas Vozes de Cathy Berberian (Monteverdi, Debussy, Cage, Berberian etc.) - acomp. Bruno Canino (piano) - Wergo, Milão, 1970.

A voz mais versátil do séc. XX deixou poucas gravações. Cathy Berberian podia cantar de tudo, do barroco aos Beatles. Americana de origem armênia, não muito diferente de Callas, que era grega e americana, Berberian ligou-se a compositores de vanguarda e forneceu-lhes uma gama vocal que ia do rosnado ao guincho. Ela se casou com Luciano Berio, ensinou-lhe inglês e apresentou-o a James Joyce. Berio usou a voz dela como Matisse fez com a esposa, fazendo arte e, ao mesmo tempo, descobrindo um estilo. Berberian também conseguiu para si obras de Cage, Milhaud, Maderna e Stravinsky, que escreveu a "Elegia para John Fitzgerald Kennedy" tendo em vista a habilidade única que ela tinha de dar a tudo o que cantava um poder de comunicação irresistível.
Esta apaixonada desbravadora, uma estranha aos estúdios de gravação, pode ser ouvida principalmente em raras reedições de seus recitais radiofônicos. Neste programa em Milão, ela se encontrava no auge de suas habilidades e podê demonstrar todo o poder de sua versatilidade. Ela interpreta recitativos de Monteverdi, "Summertime", de Gershwin, superando Ella Fitzgerald, e uma "Surabaya Jonny" que é todo um mundo de mulher distante do de Lotte Lenya: Cathy não é uma incapaz ferida, e sim uma vingadora sexual. A composição "Stripsody" (de sua autoria), uma vocalização dos ruídos que os personagens fazem nas histórias em quadrinhos, é o clímax do recital, mas seu valor cult está na ambientação barroca de "Ticket to Ride" de Lennon e McCartney, a qual, além de ser hilariante, recontextualiza os Beatles como trovadores pós-medievais em uma paisagem imaculada. O disco deveria trazer um alerta: estas interpretações são inimitáveis - não tente fazer isso em casa.

sábado, 27 de junho de 2009

Vivaldi: As Quatro Estações - Academy of St Martin-in-the-Fields - Neville Marriner - Decca -Londres, St John Church

Com mais de quatrocentas gravações realizadas, "As Quatro Estações", do mestre-escola de Veneza, que vendia seus trabalhos musicais, representam o epicentro do gosto do público: são doces e descomplicadas. A escala vai desde a versão com grande orquestra, de Karajan, até o espartano conjunto de 16 instrumentos na interpretação do Drottningholm Baroque Ensemble da Suécia. A primeira a vender maciçamente foi a gravação de 1965, com o grupo I Musici, de Roma, com Felix Ayo como solista, tão bem-sucedida que teve que ser refeita quatro anos depois em estéreo.
As Quatro Estações eram ainda uma obra para iniciados, mas apenas até caírem nas mãos da Academy. No final dos anos 60, a orquestra de Neville Marriner abraçou um estilo que estava a meio caminho entre a suavidade tradicional e as ásperas investigações dos executantes radicais de música antiga. Tendo trabalhado com uma série de compositores "água-com-açucar", o grupo se fixou em Vivaldi e quebrou a cara. Nada do que eles tocaram durante uma sessão matutina, que custou muito dinheiro, pareceu agradar a nenhum dos músicos, e o clima começou a esquentar quando todos foram almoçar. A Igreja de São João é uma construção em estilo palladiano localizada no coração do distrito político de Londres, a cinco minutos a pé do Parlamento, uma área cheia de lugares tranqüilos para relaxar. Quando retornaram, vários músicos pareciam esgotados. Ao se acender a luz vermelha o violinista neozelandês Alan Loveday, solista da peça, pegou seu instrumento e tocou sem pausas durante quarenta minutos. Seu feito notável chegou às lojas depressa e começou a vender sem parar. Ele fez da Academy o produto de exportação musical mais procurado da Grã- Bretanha, e de Vivaldi um acessório para jantares festivos no mundo todo. Todo violinista importante gravou sua versão da obra. Isaac Stern tocou-a como se fosse uma peça de Mozart. Nigel Kennedy fatiou-a em faixas com a duração de música pop. Anne Sophie-Mutter posou para uma capa sexy, e Viktoria Mullova apareceu com um penteado maluco preso com uma corda de tripa. James Galway transcreveu o solo para faluta, cereal matinal disfarçado de música. Dentre as quatrocentas gravações, a de Loveday se destaca por sua atitude "que-se-dane", algo que qualquer músico deve sentir depois de entornar o caldo cinco vezes.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Bach: Quatro Suítes Orquestrais - Concentus Musicus - Nikolaus Harnoncourt - Telefunken/Warner -Viena, 1967.

Embora não tão populares quanto os Concertos de Brandenburgo, as suítes (ou aberturas) orquestrais de Bach são essencialmentes mais significativas, pois antevêem a forma sinfônica. Tocadas até então apenas (ou talvez exclusivamente) por conjuntos sinfônicos, elas foram escolhidas, em meados da década de 1960, por um violoncelista dissidente de Viena que queria mudar a visão do mundo sobre o som vienense.
Nikolaus Harnoncourt, um descendente dos imperadores Habsburgo, buscou recriar os ritmos marcados e a sonoridade correta do período barroco em instrumentos originais que encontrava em lojas de antiguidades. "Ele nunca quis iniciar uma revolução", disseram seus amigos, "mas de qualquer modo ela acabou ocorrendo." O Bach de Harnoncourt era vivo, elegante, ágil e despretensiosamente dançável. Tinha credenciais acadêmicas e apelo de público, uma rara confluência de interesses, e atraia pessoas que, na sua totalidade, eram uns vinte anos mais jovens do que os frequentadores habituais das salas de concerto. Harnoncourt gravou os Concertos de Brandemburgo em 1963, e as suítes quatro anos depois, às vésperas de uma turnê pelos Estados Unidos que renderia a seus músicos dinheiro suficiente para largar seus empregos em orquestras sinfônicas e se dedicarem a recriar um passado musical dado como perdido. Menos obcecado pela velocidade que do que outros regentes de música antiga, Harnoncourt criou uma fusão na qual a plangência de suas flautas soava de forma interessante contra o timbre brilhante de suas cordas. No mais trivial, como na abertura da primeira suíte, ele se iguala a Karajan em perversidade perfeccionista. No entanto, quando os músicos começam a estabelecer contato uns com os outros, como fazem na "Gavotte", a música se acende e torna-se completamente amigável, puxando o ouvinte para a conversa. Este "ethos" participativo, mais do que qualquer viés acadêmico, foi o apelo especial da música antiga - antes disso, como em todas as revoluções, ele desenvolveu estruturas de liderança.
Homem reticente, com aparência de intelectual, Harnoncourt não foi talhado para aparecer como uma estrela da indústria fonográfica em fotos nas vitrinas das lojas de Salzburgo. Quando Karajan o baniu do festival por injustificada inveja, ele assumiu um posto na periferia do estrelato, ensinando prática musical histórica no Mozarteum da cidade. Muitos dos seus alunos acabaram formando grupos de música antiga, reconhecendo nêle o pai do movimento. Harnoncourt, após a morte de Karajan, regeu as Filarmônicas de Berlim e Viena e foi absorvido pela indústria da gravação.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Mahler: Sinfonia nº4 - Orquestra de Cleveland (Severance Hall) 1966

Segundo o consenso dos especialistas, portanto confiável, a Orquestra de Cleveland foi responsável pelas melhores gravações feitas nos Estados Unidos na década em que Bernstein estava sob os holofotes em NY e Ormandy vendia muitos discos com a Orquestra da Filadélfia. A razão da excelência em Cleveland era Georg Szell, um homem de horizontes estreitos e comportamento rude.
De origem húngara ele estudou regência antes da Segunda Guerra Mundial na progressista Ópera Alemã de Praga e aplicou o rigor do velho mundo em Cleveland, mais ou menos da mesma maneira que o também húngaro Fritz Reiner fazia em Chicago. Sendo provenientes de um país que Mahler amava tanto, Reiner como Szell executaram as sinfonias do compositor muito antes do amplamente comentado ciclo de Leonard Bernstein, e por razões bem diferentes. Nenhum deles estava muito interessado em psicologia ou catarse espiritual. Para eles, Mahler era um meio de exibir os extremos da extensão dinâmica e a precisão absoluta de suas orquestras. einer gravou a quarta sinfonia em 1958 com a genuína soprano suíça Lisa della Casa e um amplo desinteresse pela busca filosófica de soluções. Szell, oito anos depois, defendeu uma perfeição nota a nota para a problemática frase inicial - feita de forma atabalhoada pelo assistente do compositor, Willem Mengelberg, e preguiçosamente mole pelo seu aluno Bruno Walter. Szell prendeu a frase numa régua metronômica, liberando assim o resto da sinfonia para fluir com liberdade ilimitada. O violino cigano do segundo movimento é apenas mais uma beleza, e não uma anomalia; o Adágio é comovente, e a solista Judith Raskin surge angelicamente e canta sem ironia o almoço das hostes do Paraíso, um dos textos mais desconcertantes de Mahler. Este é um Mahler sem indulgência, tocado tal como foi escrito, numa interpretação clínica. Muitos mahlerianos a consideram antipática, preferindo a selvageria de Bernstein e de Tennstedt ou a energia dos jovens - Abbado, Chailly, Gatti. Vários mahlerianos convictos gravaram esta sinfonia: Solti, Haitink (duas vezes cada um), Boulez e Klemperer, mas sob a regência deste último a gravação foi prejudicada pela antipática solista, Schwarzkopf. A de Szell é o padrão segundo o qual as outras gravações são avaliadas. É imaculada em todos os detalhes; sua perfeição é quase sobre-humana.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Mahler: Das Lied Von der Erde (A Canção da Terra) - Christa Ludwig, Fritz Wunderlich - Orquestra Philarmonia - Otto Klemperer EMI-Londres

Mahler não viveu o bastante para ouvir A Canção da Terra. É tocável?, perguntou ele a Bruno Walter. "Será que as pessoas não vão querer fugir ao ouvi-la?" Foi um trabalho angustiado, motivado pela morte de uma filha ainda bebê, pela perda de seu posto em Viena e pelo agravamento de seu estado de saúde. Walter dirigiu a estréia em 1912, um ano após a morte de Mahler, e fez as duas primeiras gravações, a primeira em Viena, em 1936 (nenhum cantor austríaco participou nessa ocasião, por medo das sanções dos nazistas) e novamente em 1952, com o tenor austríaco Julius Patzak e a meio-soprano britânica Kathleen Ferrier, gravação esta que marcou o começo da reabilitação de Mahler no pós-guerra. Mais do que qualquer outro regente, Walter exsuda autoridade e serenidade nessa obra, uma garantia de que nem tudo estava perdido.
Klemperer, o outro acólito do compositor, escolheu uma abordagem oposta. Contestador onde Walter era condescendente, avesso a qualquer desejo de agradar, ele esperou doze anos até encontrar o par ideal de cantores e uma interpretação apropriadamente rigorosa. Sua versão chocou os críticos londrinos, um dos quais, John Amis, declarou-a "tão determinantemente anti-Walter que evita qualquer sentimento". Isso, entretanto, era o que Klemperer defendia: uma obra deve ser aberta à contradição, e sempre havia mais aspectos em Mahler do que aqueles que qualquer músico mortal poderia monopolizar. Ele regeu as seis canções de modo convincente e sem reserva sonora. O som é mais anguloso do que o creme vienense de Walter, com o fogo diminuído para uma temperatura mais adequada. A intensidade dos poemas chineses intensifica a aura de alienação. Sugestões de alegria e consolo são ilusórias: "Escura é a vida, é a morte." A natureza, em toda a sua beleza, é algo que todo homem deve deixar para trás, e cada frase flutuante do oboé ou da clarineta é uma dor provocada pela futura partida. Klemperer mantém seu controle implacavelmente até cerca de dois terços da Abschied (Despedida), quando então permite que as emoções fluam livremente. A catarse originada da supressão prolongada é fisicamente arrebatadora, como Klemperer sabia que teria que ser.
Não seria fácil conseguir reunir os dois solistas em um estúdio, pois suas agendas eram cheias; a solução foi gravá-los separadamente. Christa Ludwig foi a mais inteligente entre as meio-sopranos, e Fritz Wunderlich estava chegando à fama mundial. Dois meses depois desta gravação, ele se envolveu em um acidente doméstico com uma arma de fogo e morreu antes de o disco ser lançado. Tingida de drama, esta versão da Canção da Terra adquiriu uma nobreza estóica que acabou por tornar-se, com o tempo, a norma interpretativa.

Mozart: Concertos para piano 22-25 - Alfred Brendel - Orquestra Pró-Música de Viena - Paul Angerer - Vox - Viena, 1966.

Alfred Brendel, Pianista lutador na Viena dos anos 50, conseguiu se lançar por intermédio de um pequeno selo americano. A vox, de propriedade de George de H. Mendelshon-Bartholdy, era uma empresa minúscula que dava emprego aos músicos da Filarmônica de Viena, usando nomes falsos para fugir de restrições legais, e pesquisava as salas de concerto em busca de talentos, o que havia de sobra. Brendel foi posto a trabalhar em "Quadros de Uma Exposição", de Mussorgsky, e "Islamei" de Balakirev, um risível par de peças para um artista de toque germânico leve e preciso, ex-aluno do severo Edwin Fischer. A este lançamento seguiram-se as transcrições de Lizst de melodias populares de ópera, uma espécie de parada de sucessos de Liberace. Como ambos os discos venderam mais do que o esperado, foi permitido a Brendel abordar Schubert e Beethoven em ciclos substanciais. As gravações que fizeram sua fama, no entanto , foram as dos concertos para piano de Mozart, tocados de forma tão leve e rápida que rivalizaram com as "interpretações de época", então uma novidade em voga. O regente foi Paul Angerer, um compositor local. Brendel introduziu uma lacônica angularidade que tratava a música com respeito, mas também, por vezes, com um sorriso aberto e contagiante que, no Allegro do Concerto em Mi Bemol, torna-se uma maldisfarçada gargalhada. A empáfia de Mozart e seu desprezo pelos compositores menos dotados surgem claros na interpretação de Brendel. Sem falsa reverência ou virtuosidade exibicionista, ele descortina um Mozart vivo e pulsante que cria novas obras como um ataque periódico contra a mediocridade reinante. A Filarmônica de Viena (com outro nome) responde intuitivamente a esta abordagem, e o diálogo interativo é consistentemente interessante - ainda mais nos concertos pouco conhecidos do que nos trabalhos triviais.
Brendel, juntamente com outra pianista da Vox, Ingrid Haebler, foi assimilado pela Philips, para a qual ele gravou todos os concertos de Mozart novamente, alguns deles duas vezes, com regentes mais competentes, melhor som e toda a parafernália da indústria de gravação. Ele herdou o manto de Artur Schnabel como pianista-filósofo, um pilar do mundo da música, e foi um poeta com trabalhos publicados. Seus primeiros discos com obras de Mozart, com as capas extravagantes da Vox, parecem pueris em comparação com os esplendores que se seguiram, mas Brendel permitiu que eles continuassem em circulação, o que dá uma idéia da sua integridade.