terça-feira, 30 de junho de 2009

Dvorák: Sinfonia do Novo Mundo-Sinfonia nº8 - Orquestra Filarmônica de Berlim - Rafael Kubelik - DG -Berlim, Igreja de Jesus Cristo

Em 1948, pouco depois de os comunistas atirarem Jan Masaryk por uma janela do edifício do Ministério do Exterior, Rafael Kubelik fugiu de Praga com a família, sabendo que nunca mais poderia retornar. O nome Kubelik era muito conhecido. Seu pai, Jan, fora um violinista famoso internacionalmente, que retornou para morrer entre sua gente, sob a acupação nazista. Rafael foi um regente maravilhosamente sensível, muito estimado pelos músicos de Praga e de Brno, e mais tarde em todo o mundo.
Em busca de asilo político, ele passou momentos difíceis em Chicago e no Covent Garden de Londres, até encontrar uma orquestra de alto nível internacional na Rádio Bávara e iniciar uma carreira de gravações na Deustche Grammophon. Homem alto e elegante, ele tinha uma enganadora habilidade de obter sonoridades quentes das orquestras, às vezes à custa da clareza dos ataques. Seu ciclo de Mahler erra para o lado da gentileza, e seu Brahms, embora belamente colorido, evita as profundezas mais sombrias, como se não quisesse enfrentar a angústia da audiência. Na música tcheca, entretanto, ele se desprendeu de todas as amarras e deu vazão à saudade. Nas horas mais escuras da Guerra fria ele declarou publicamente que gostaria de ver os tchecos recuperarem a sua liberdade e levou adiante a herança do seu país com fervor messiânico. A Nona Sinfonia de Dvorák, "Do Novo Mundo", escrita nos Estados Unidos com saudade da terra natal, adquire, nas mãos de Kubelik, uma urgência, um senso de passado conectado ao futuro, que suprime o tempo presente. Com a Filarmônica de Berlim, os meninos-prodígio de Karajan, ele extraiu uma execução de alto risco e reatividade explosiva dos músicos, que tocaram sentados na beirada das cadeiras. O primeiro flautista, o então jovem James Galway, repete o tema de abertura com energia contida, como se fosse explodir, caso tivesse que esperar mais um instante. As duas últimas sinfonias foram lançadas como as primeiras de um ciclo sinfônico de Dvorák pela DG (István Kertész estava fazendo outro pela Decca).
Kubelik se aposentou por problemas de artrite, em meados dos anos 80. Quando, porém, o comunismo soviético desmoronou, em 1989, ele voltou para a sua terra, curvado pela idade e pela dor, para reger "Ma Vlast" (Minha Terra) de Smetana. A última peça que ele regeu, antes de morrer em 1996, foi a Sinfonia do Novo Mundo.

Haydn: Sinfonias Parisienses -Philarmonia Hungarica - Antal Dorati - Decca - Marl, Alemanha, Igreja de São Bonifácio, 1971

Entre aqueles que fugiram da Hungria após a invasão soviética, em 1956, estavam centenas de músicos. Oitenta deles formaram uma orquestra em Viena, mas lutavam para encontrar trabalho. O compositor Nicolas Nabokov, sobrinho do escritor, conseguiu patrocínio das Fundações Rockefeller e Ford e convenceu Antal Dorati a reger o conjunto. Dorati, de volta à Europa depois de um longo período regendo orquestras americanas, estava tentando convencer a Decca a deixá-lo gravar as 104 sinfonias do até então pouco comercial Joseph Haydn. Sua proposta coincidiu com a difícil situação dos refugiados; desse modo, um dos maiores projetos de gravação teve lugar.
A pequena cidade de Marl, na Vestfália, ofereceu residência à orquestra, e a Igreja de São Bonifácio tinha uma acústica transparente. Muitas da sinfonias foram gravadas pela primeira vez, e as execuções, embora usando instrumentos modernos, seguiram as recentes edições do biógrafo de Haydn, H.C. Robbins Landon. Os andamentos, leves e arejados, são completamente diversos dos andamentos lúgubres que eram a norma das orquestras alemãs e a substância despretensiosa das sinfonias é salutarmente diferente do peso de expectativa que as obras de Mozart e Beethoven carregam. O fato de uma sinfonia se chamar O Urso, e outra, A Galinha, e ainda outra, A Rainha, indica certa irreverência da parte do compositor. Mais frívolas e menos conhecidas que as Sinfonias Londrinas, que vieram depois, as sinfonias parisienses conquistaram os ouvintes através do disco e voltaram ao repertório de concerto por algum tempo. Uma delas, a Sinfonia nº86 em Ré Maior, destrói a identidade tonal de maneira a sugerir que o compositor testava o ouvido dos seus músicos e do público. Dorati e os húngaros se divertiram muito.
Na última sessão de gravação, em Dezembro de 1972, Dorati anunciou a venda de meio milhão de discos. Esse número rapidamente quadruplicou, tornando-se o maior sucesso da Decca depois do Anel. Aquela que já havia sido uma orquestra de sem-tetos gozou da fama de um dos melhores grupos europeus -até a Guerra Fria terminar e o governo alemão acabar com o subsídio, o que resultou na dissolução da grupo.

domingo, 28 de junho de 2009

Magnificathy: As Muitas Vozes de Cathy Berberian (Monteverdi, Debussy, Cage, Berberian etc.) - acomp. Bruno Canino (piano) - Wergo, Milão, 1970.

A voz mais versátil do séc. XX deixou poucas gravações. Cathy Berberian podia cantar de tudo, do barroco aos Beatles. Americana de origem armênia, não muito diferente de Callas, que era grega e americana, Berberian ligou-se a compositores de vanguarda e forneceu-lhes uma gama vocal que ia do rosnado ao guincho. Ela se casou com Luciano Berio, ensinou-lhe inglês e apresentou-o a James Joyce. Berio usou a voz dela como Matisse fez com a esposa, fazendo arte e, ao mesmo tempo, descobrindo um estilo. Berberian também conseguiu para si obras de Cage, Milhaud, Maderna e Stravinsky, que escreveu a "Elegia para John Fitzgerald Kennedy" tendo em vista a habilidade única que ela tinha de dar a tudo o que cantava um poder de comunicação irresistível.
Esta apaixonada desbravadora, uma estranha aos estúdios de gravação, pode ser ouvida principalmente em raras reedições de seus recitais radiofônicos. Neste programa em Milão, ela se encontrava no auge de suas habilidades e podê demonstrar todo o poder de sua versatilidade. Ela interpreta recitativos de Monteverdi, "Summertime", de Gershwin, superando Ella Fitzgerald, e uma "Surabaya Jonny" que é todo um mundo de mulher distante do de Lotte Lenya: Cathy não é uma incapaz ferida, e sim uma vingadora sexual. A composição "Stripsody" (de sua autoria), uma vocalização dos ruídos que os personagens fazem nas histórias em quadrinhos, é o clímax do recital, mas seu valor cult está na ambientação barroca de "Ticket to Ride" de Lennon e McCartney, a qual, além de ser hilariante, recontextualiza os Beatles como trovadores pós-medievais em uma paisagem imaculada. O disco deveria trazer um alerta: estas interpretações são inimitáveis - não tente fazer isso em casa.

sábado, 27 de junho de 2009

Vivaldi: As Quatro Estações - Academy of St Martin-in-the-Fields - Neville Marriner - Decca -Londres, St John Church

Com mais de quatrocentas gravações realizadas, "As Quatro Estações", do mestre-escola de Veneza, que vendia seus trabalhos musicais, representam o epicentro do gosto do público: são doces e descomplicadas. A escala vai desde a versão com grande orquestra, de Karajan, até o espartano conjunto de 16 instrumentos na interpretação do Drottningholm Baroque Ensemble da Suécia. A primeira a vender maciçamente foi a gravação de 1965, com o grupo I Musici, de Roma, com Felix Ayo como solista, tão bem-sucedida que teve que ser refeita quatro anos depois em estéreo.
As Quatro Estações eram ainda uma obra para iniciados, mas apenas até caírem nas mãos da Academy. No final dos anos 60, a orquestra de Neville Marriner abraçou um estilo que estava a meio caminho entre a suavidade tradicional e as ásperas investigações dos executantes radicais de música antiga. Tendo trabalhado com uma série de compositores "água-com-açucar", o grupo se fixou em Vivaldi e quebrou a cara. Nada do que eles tocaram durante uma sessão matutina, que custou muito dinheiro, pareceu agradar a nenhum dos músicos, e o clima começou a esquentar quando todos foram almoçar. A Igreja de São João é uma construção em estilo palladiano localizada no coração do distrito político de Londres, a cinco minutos a pé do Parlamento, uma área cheia de lugares tranqüilos para relaxar. Quando retornaram, vários músicos pareciam esgotados. Ao se acender a luz vermelha o violinista neozelandês Alan Loveday, solista da peça, pegou seu instrumento e tocou sem pausas durante quarenta minutos. Seu feito notável chegou às lojas depressa e começou a vender sem parar. Ele fez da Academy o produto de exportação musical mais procurado da Grã- Bretanha, e de Vivaldi um acessório para jantares festivos no mundo todo. Todo violinista importante gravou sua versão da obra. Isaac Stern tocou-a como se fosse uma peça de Mozart. Nigel Kennedy fatiou-a em faixas com a duração de música pop. Anne Sophie-Mutter posou para uma capa sexy, e Viktoria Mullova apareceu com um penteado maluco preso com uma corda de tripa. James Galway transcreveu o solo para faluta, cereal matinal disfarçado de música. Dentre as quatrocentas gravações, a de Loveday se destaca por sua atitude "que-se-dane", algo que qualquer músico deve sentir depois de entornar o caldo cinco vezes.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Bach: Quatro Suítes Orquestrais - Concentus Musicus - Nikolaus Harnoncourt - Telefunken/Warner -Viena, 1967.

Embora não tão populares quanto os Concertos de Brandenburgo, as suítes (ou aberturas) orquestrais de Bach são essencialmentes mais significativas, pois antevêem a forma sinfônica. Tocadas até então apenas (ou talvez exclusivamente) por conjuntos sinfônicos, elas foram escolhidas, em meados da década de 1960, por um violoncelista dissidente de Viena que queria mudar a visão do mundo sobre o som vienense.
Nikolaus Harnoncourt, um descendente dos imperadores Habsburgo, buscou recriar os ritmos marcados e a sonoridade correta do período barroco em instrumentos originais que encontrava em lojas de antiguidades. "Ele nunca quis iniciar uma revolução", disseram seus amigos, "mas de qualquer modo ela acabou ocorrendo." O Bach de Harnoncourt era vivo, elegante, ágil e despretensiosamente dançável. Tinha credenciais acadêmicas e apelo de público, uma rara confluência de interesses, e atraia pessoas que, na sua totalidade, eram uns vinte anos mais jovens do que os frequentadores habituais das salas de concerto. Harnoncourt gravou os Concertos de Brandemburgo em 1963, e as suítes quatro anos depois, às vésperas de uma turnê pelos Estados Unidos que renderia a seus músicos dinheiro suficiente para largar seus empregos em orquestras sinfônicas e se dedicarem a recriar um passado musical dado como perdido. Menos obcecado pela velocidade que do que outros regentes de música antiga, Harnoncourt criou uma fusão na qual a plangência de suas flautas soava de forma interessante contra o timbre brilhante de suas cordas. No mais trivial, como na abertura da primeira suíte, ele se iguala a Karajan em perversidade perfeccionista. No entanto, quando os músicos começam a estabelecer contato uns com os outros, como fazem na "Gavotte", a música se acende e torna-se completamente amigável, puxando o ouvinte para a conversa. Este "ethos" participativo, mais do que qualquer viés acadêmico, foi o apelo especial da música antiga - antes disso, como em todas as revoluções, ele desenvolveu estruturas de liderança.
Homem reticente, com aparência de intelectual, Harnoncourt não foi talhado para aparecer como uma estrela da indústria fonográfica em fotos nas vitrinas das lojas de Salzburgo. Quando Karajan o baniu do festival por injustificada inveja, ele assumiu um posto na periferia do estrelato, ensinando prática musical histórica no Mozarteum da cidade. Muitos dos seus alunos acabaram formando grupos de música antiga, reconhecendo nêle o pai do movimento. Harnoncourt, após a morte de Karajan, regeu as Filarmônicas de Berlim e Viena e foi absorvido pela indústria da gravação.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Mahler: Sinfonia nº4 - Orquestra de Cleveland (Severance Hall) 1966

Segundo o consenso dos especialistas, portanto confiável, a Orquestra de Cleveland foi responsável pelas melhores gravações feitas nos Estados Unidos na década em que Bernstein estava sob os holofotes em NY e Ormandy vendia muitos discos com a Orquestra da Filadélfia. A razão da excelência em Cleveland era Georg Szell, um homem de horizontes estreitos e comportamento rude.
De origem húngara ele estudou regência antes da Segunda Guerra Mundial na progressista Ópera Alemã de Praga e aplicou o rigor do velho mundo em Cleveland, mais ou menos da mesma maneira que o também húngaro Fritz Reiner fazia em Chicago. Sendo provenientes de um país que Mahler amava tanto, Reiner como Szell executaram as sinfonias do compositor muito antes do amplamente comentado ciclo de Leonard Bernstein, e por razões bem diferentes. Nenhum deles estava muito interessado em psicologia ou catarse espiritual. Para eles, Mahler era um meio de exibir os extremos da extensão dinâmica e a precisão absoluta de suas orquestras. einer gravou a quarta sinfonia em 1958 com a genuína soprano suíça Lisa della Casa e um amplo desinteresse pela busca filosófica de soluções. Szell, oito anos depois, defendeu uma perfeição nota a nota para a problemática frase inicial - feita de forma atabalhoada pelo assistente do compositor, Willem Mengelberg, e preguiçosamente mole pelo seu aluno Bruno Walter. Szell prendeu a frase numa régua metronômica, liberando assim o resto da sinfonia para fluir com liberdade ilimitada. O violino cigano do segundo movimento é apenas mais uma beleza, e não uma anomalia; o Adágio é comovente, e a solista Judith Raskin surge angelicamente e canta sem ironia o almoço das hostes do Paraíso, um dos textos mais desconcertantes de Mahler. Este é um Mahler sem indulgência, tocado tal como foi escrito, numa interpretação clínica. Muitos mahlerianos a consideram antipática, preferindo a selvageria de Bernstein e de Tennstedt ou a energia dos jovens - Abbado, Chailly, Gatti. Vários mahlerianos convictos gravaram esta sinfonia: Solti, Haitink (duas vezes cada um), Boulez e Klemperer, mas sob a regência deste último a gravação foi prejudicada pela antipática solista, Schwarzkopf. A de Szell é o padrão segundo o qual as outras gravações são avaliadas. É imaculada em todos os detalhes; sua perfeição é quase sobre-humana.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Mahler: Das Lied Von der Erde (A Canção da Terra) - Christa Ludwig, Fritz Wunderlich - Orquestra Philarmonia - Otto Klemperer EMI-Londres

Mahler não viveu o bastante para ouvir A Canção da Terra. É tocável?, perguntou ele a Bruno Walter. "Será que as pessoas não vão querer fugir ao ouvi-la?" Foi um trabalho angustiado, motivado pela morte de uma filha ainda bebê, pela perda de seu posto em Viena e pelo agravamento de seu estado de saúde. Walter dirigiu a estréia em 1912, um ano após a morte de Mahler, e fez as duas primeiras gravações, a primeira em Viena, em 1936 (nenhum cantor austríaco participou nessa ocasião, por medo das sanções dos nazistas) e novamente em 1952, com o tenor austríaco Julius Patzak e a meio-soprano britânica Kathleen Ferrier, gravação esta que marcou o começo da reabilitação de Mahler no pós-guerra. Mais do que qualquer outro regente, Walter exsuda autoridade e serenidade nessa obra, uma garantia de que nem tudo estava perdido.
Klemperer, o outro acólito do compositor, escolheu uma abordagem oposta. Contestador onde Walter era condescendente, avesso a qualquer desejo de agradar, ele esperou doze anos até encontrar o par ideal de cantores e uma interpretação apropriadamente rigorosa. Sua versão chocou os críticos londrinos, um dos quais, John Amis, declarou-a "tão determinantemente anti-Walter que evita qualquer sentimento". Isso, entretanto, era o que Klemperer defendia: uma obra deve ser aberta à contradição, e sempre havia mais aspectos em Mahler do que aqueles que qualquer músico mortal poderia monopolizar. Ele regeu as seis canções de modo convincente e sem reserva sonora. O som é mais anguloso do que o creme vienense de Walter, com o fogo diminuído para uma temperatura mais adequada. A intensidade dos poemas chineses intensifica a aura de alienação. Sugestões de alegria e consolo são ilusórias: "Escura é a vida, é a morte." A natureza, em toda a sua beleza, é algo que todo homem deve deixar para trás, e cada frase flutuante do oboé ou da clarineta é uma dor provocada pela futura partida. Klemperer mantém seu controle implacavelmente até cerca de dois terços da Abschied (Despedida), quando então permite que as emoções fluam livremente. A catarse originada da supressão prolongada é fisicamente arrebatadora, como Klemperer sabia que teria que ser.
Não seria fácil conseguir reunir os dois solistas em um estúdio, pois suas agendas eram cheias; a solução foi gravá-los separadamente. Christa Ludwig foi a mais inteligente entre as meio-sopranos, e Fritz Wunderlich estava chegando à fama mundial. Dois meses depois desta gravação, ele se envolveu em um acidente doméstico com uma arma de fogo e morreu antes de o disco ser lançado. Tingida de drama, esta versão da Canção da Terra adquiriu uma nobreza estóica que acabou por tornar-se, com o tempo, a norma interpretativa.

Mozart: Concertos para piano 22-25 - Alfred Brendel - Orquestra Pró-Música de Viena - Paul Angerer - Vox - Viena, 1966.

Alfred Brendel, Pianista lutador na Viena dos anos 50, conseguiu se lançar por intermédio de um pequeno selo americano. A vox, de propriedade de George de H. Mendelshon-Bartholdy, era uma empresa minúscula que dava emprego aos músicos da Filarmônica de Viena, usando nomes falsos para fugir de restrições legais, e pesquisava as salas de concerto em busca de talentos, o que havia de sobra. Brendel foi posto a trabalhar em "Quadros de Uma Exposição", de Mussorgsky, e "Islamei" de Balakirev, um risível par de peças para um artista de toque germânico leve e preciso, ex-aluno do severo Edwin Fischer. A este lançamento seguiram-se as transcrições de Lizst de melodias populares de ópera, uma espécie de parada de sucessos de Liberace. Como ambos os discos venderam mais do que o esperado, foi permitido a Brendel abordar Schubert e Beethoven em ciclos substanciais. As gravações que fizeram sua fama, no entanto , foram as dos concertos para piano de Mozart, tocados de forma tão leve e rápida que rivalizaram com as "interpretações de época", então uma novidade em voga. O regente foi Paul Angerer, um compositor local. Brendel introduziu uma lacônica angularidade que tratava a música com respeito, mas também, por vezes, com um sorriso aberto e contagiante que, no Allegro do Concerto em Mi Bemol, torna-se uma maldisfarçada gargalhada. A empáfia de Mozart e seu desprezo pelos compositores menos dotados surgem claros na interpretação de Brendel. Sem falsa reverência ou virtuosidade exibicionista, ele descortina um Mozart vivo e pulsante que cria novas obras como um ataque periódico contra a mediocridade reinante. A Filarmônica de Viena (com outro nome) responde intuitivamente a esta abordagem, e o diálogo interativo é consistentemente interessante - ainda mais nos concertos pouco conhecidos do que nos trabalhos triviais.
Brendel, juntamente com outra pianista da Vox, Ingrid Haebler, foi assimilado pela Philips, para a qual ele gravou todos os concertos de Mozart novamente, alguns deles duas vezes, com regentes mais competentes, melhor som e toda a parafernália da indústria de gravação. Ele herdou o manto de Artur Schnabel como pianista-filósofo, um pilar do mundo da música, e foi um poeta com trabalhos publicados. Seus primeiros discos com obras de Mozart, com as capas extravagantes da Vox, parecem pueris em comparação com os esplendores que se seguiram, mas Brendel permitiu que eles continuassem em circulação, o que dá uma idéia da sua integridade.

sábado, 20 de junho de 2009

Stravinsky: The Edition - Sacred Works - Vários artistas e orquestras, sob a direção do compositor CBS Sony BMG

Igor Stravinsky foi o primeiro compositor a ter toda a obra gravada em vida. Não apenas em vida, como no processo de trocar de estilos que fizeram a sua fama - balé russo e neoclassicismo - para as regiões distantes e não-comerciais da corrosiva atonalidade. "Como ele mesmo disse, Stravinnsky sobreviveu à sua própria popularidade", escreveu seu amigo Goddard Lieberson, presidente da Columbia Records, em 1962. "Ele não sucumbiu a ela, nem se deixou congelar num período popular de sua música...ele continua a ser um vigoroso e jovem criador. "
Stravinsky prestou um tributo recíproco. Lieberson, disse ele, "praticamente se voltou para o compositor moderno, em vez de se ocupar com as mediocridades estabelecidas entre os executantes". O projeto de gravação de suas obras completas, que começou em 1947 e continuou até sua morte, em 1971, deu a ele total controle artístico. Ele ora regia pessoalmente, ora, à medida que sua saúde ia se debilitando com a idade, supervisionava a interpretação de seus trabalhos sob a direção de seu competente assistente, Robert Craft. Sua principal preocupação era a fidelidade textual. "Eu adoro minha música - me desculpe" ele dizia a qualquer músico que se desviasse. "Stravinsky tinha um ouvido incansável para nuances de interpretação e nunca dava sua aprovação a não ser que estivesse completamente satisfeito", lembra a esposa de Lieberson, Vera Zorina. As execuções não são sempre as mais entusiasmadas ou ritmicamente consistentes, em especial nas furiosas danças da juventude do compositor, indispensáveis por estabelecerem uma conexão entre o lirismo expressivo e o modernismo analítico. O volume de obras sacras contém algumas das suas peças menos conhecidas, que são também as mais sinceras. Trreni,* embora adstringentemente atonal, poderia passar despercebido na liturgia de qualquer catedral ortodoxa, tão enfática é a forma que Stravinsky, como regente, dá à sua estrutura arqueada. O "Canticum Sacrum", escrito para a basílica de São Marcos, em Veneza (cidade que o compositor escolheu para ser enterrado), mostra-se como uma peculiar e tangencial reverência ao ritual católico, buscando relevância numa época moderna que logo aboliria o latim como língua de oração. Um intróito em memória de seu amigo T. S. Eliot é o lugar de uma metáforica "Terra Devastada", embora em cores muito mais profundas que os pastéis do poeta. As "Variações Sobre um Coral de Natal de Bach" poderiam muito bem ter feito sucesso no mercado de presentes de fim de ano, muito embora as tias solteironas pudessem se chocar com certas sonoridades. O frescor da invenção de Stravinsky nestes trabalhos raramente executados é espantoso, e a coragem da CBS em promover sua gravação integral foi um ato de fé que chamou pouca atenção em meados do século, mas que logo seria extinto pela ditadura das empresas.


* Trreni (lamentações) com texto das lamentações de Jeremias, composta em 1948, é considerada sua primeira obra inteiramente serial.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Rodrigo: Concierto de Aranjuez - John Williams - Orquestra da Filadélfia - Eugene Ormandy - CBS Filadélfia Town Hall, Dezembro de 1965

O concerto mais popular do século XX, depois do Concerto nº2 de Rachmaninov, foi escrito por um cego, sob a tirania fascista e ambientado no esplendor cortesão e escapista de um jardim do séc. XIX da dinastia Bourbon. O primeiro e o último movimento não são grande coisa, mas o Adágio central desfalece de desejos inatingíveis. Após quatro acordes no violão, o corne inglês inicia seu maior solo depois da Sinfonia do Novo Mundo, de Dvórak; muito da magia que se segue está no diálogo entre esses dois instrumentos. O tema apaixonado de Rodrigo inspirou Miles Davis em "Sketches of Spain", e foi adaptado às palavras "mon amour" pelo cantor francês Richard Anthony. Sua atração, disse o compositor, tem origem na "síntese entre o clássico e o popular, tanto em forma como em emoção." Contudo não foi tanto a unidade, mas as sugestões de fragilidade e fragmentação que deram ao tema seu apelo universal.Rodrigo, cego em conseqüencia da difteria aos três anos de idade, estava vivendo na pobreza e sentia muito medo (sua esposa era estrangeira e judia) em 1940, quando escreveu Aranjuez para o instrumento nacional, o violão, tornando-se um ícone instantaneamente. Pianista capaz, ele negou sequer ter tentado um dia tocar violão, e não ficou ofendido quando o grande Andrés Segovia rejeitou o concerto, alegando que várias passagens estavam escritas na tonalidade errada e parte da música fazia seu violão soar como um bandolim. (Rodrigo compensou-o mais tarde com uma música mais gratificante: "Fantasia para un Gentilhombre"
Pela necessidade de se ter uma estrela espanhola, o concerto ficou disponível para apropriações. O inglês Julian Bream o estreou em disco com uma interpretação que exagerou no sentimentalismo. Mas o homem que pôs fogo nas lojas de disco foi o jovem australiano John Williams, que havia recebido as bençãos de Segovia a caminho de Londres e fez seu disco de estréia sob os auspícios da afinada sobrinha de Fred Gaisberg, Isabella Wallich. Williams, contratado pela CBS, era a própria imagem dos anos 60, com seus longos cabelos escuros e camisa folgada. O selo, por razões obscuras, colocou-o junto à solene Orquestra da Filadélfia, dirigida por Eugene Ormandy, que nunca foi visto sem terno e gravata e sabia tudo a respeito de clássicos populares, por ter trabalhado com Rachmaninov. Seja por acidente ou por desígnio, a dupla produziu um sucesso duradouro, uma atração de opostos.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Wagner - O Anel dos Nibelungos - Orquestra Filarmônica de Viena - Georg Solti - Decca -Viena

Com uma duração total de quatro noites, ou quinze horas, o ciclo do "Anel dos Nibelungos" de Wagner era longo demais para o disco antes do LP, inviável antes do estéreo e incompatível com os orçamentos que as gravadoras alocavam nos anos 50 e com o que os consumidores estavam dispostos a gastar. O projeto da Decca começou com uma visão do jovem produtor John Culshaw, que visitou Bayreuth e ficou abismado com o nível de ruído de palco que era captado por seus microfones. Caso o Anel viesse a ser gravado, argumentou ele, isso teria de ser feito em estúdio. Ele precisou de seis anos até conseguir o sinal verde para uma versão experimental do "Ouro do Reno", a mais curta das peças do pacote.Culshaw se instalou em uma casa de banhos desativada em Viena, com a melhor orquestra da Europa ao alcance de uma rápida viagem de ônibus. O ciclo era tão raro em países de lingua inglesa que Culshaw era a única pessoa da equipe que já o tinha assistido integralmente no palco. Seu regente era um judeu húngaro prematuramente calvo, que tinha sua base em Frankfurt e era desprezado pelos músicos da Filarmônica de Viena. Os riscos eram perigosamente altos, mas Georg Solti tinha uma abordagem grandiosa do Anel, que Culshaw havia retrabalhado como um conceito puramente aural, livre das distrações visuais. O engenheiro de som Gordon Party foi instruído a simular os sons de cavalgadas e bigornas, quando fosse preciso, sem relinchos e pancadas desnecessárias. Tudo foi organizado para ser apreciado apenas com os ouvidos. Os cantores se distribuíram por três gerações. Kirsten Flagstad, seduzida a deixar sua aposentadoria nos fiordes, cantou Fricka no "Ouro do Reno"; Brunhilde foi interpretada pela inspirada sueca Birgit Nilsson. As donzelas do Reno incluíram a jovem Lucia Popp e Gwyneth Jones; Christa Ludwig foi Wautraute; Joan Sutherlan cantou o pássaro da floresta. Wolfgang Windgassen foi Sigfried, George London e Hans Hotter cantaram Wotan e Dietrich Fischer-Diskeau foi Gunther no "Crepúsculo dos Deuses. Solti impôs sobre as sessões (que se estenderam por sete anos), um controle sobre-humano, nunca tão sutil quanto Knappertsbusch ou Furtwängler, mas de maneira geral, mais acurado. O Anel da Decca fez seu nome internacionalmente e criou um conceito de perfeição em ópera que jamais pôde ser reproduzido no palco.Num empreendimento de tanta magnitude, os detalhes podem ser distorcidos, mas tal foi a consistência do duplo controle exercido por Culshaw e Solti que a menor das partes reflete a grandeza do todo. A introdução orquestral do "Crepúsculo dos Deuses", seguido pelo canto das três Norns - Helen Watts, Grace Hoffman, Anita Välkki - é uma das mais impressionantes sequëncias jamais gravadas, não apenas como prelúdio, mas como um drama autônomo, um ato por si mesmo. Seguida por uma contida Nilsson ao nascer do sol, reservando suas fúrias para o final, a música exerce um efeito hipnótico, irresistível e inesquecível. O mundo germânico, temendo a perda de sua herança, respondeu com gravações do Anel com Karajan, em Berlim, e com Böhm, em Bayreuth. Um Anel totalmente francês, em comemoração ao centenário da obra, dirigido por Patrice Chereau e regido por Pierre Boulez, foi filmado em treze episódios para a TV, em 1976, em Bayreuth. Mais Anéis se seguiram, com Sawalish, Haitink, Janiwsky e Levine. Nenhum deles se iguala ao de Solti em coerência, clareza ou admiração espiritual diante da criação e destruição do mundo.Do mesmo modo, nenhum outro produtor reproduziu a missão democrática de Culshaw. "A doença da ópera", escreveu Culshaw, "é que ela é uma loja fechada, muito cara e exclusiva. Richard Wagner detestava essa atitude cem anos atrás, e apenas agora nós estamos fazendo progresso na direção de uma mudança. Se, mesmo para uma pequena parcela, o Anel gravado em disco contribuiu para essa mudança, acredito que todos nós, de alguma forma conectados com isso, temos uma razão para nos alegrar." Esse ideal artístico foi confirmado pelas maiores vendas jamais alcançadas por uma gravação clássica, resultado que significa que muito mais pessoas ouviram o Anel em disco do que o assistiram no teatro.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Elgar: Concerto para Violoncelo, Sea Pictures - Jacqueline du Pré, Janet baker - Orquestra Sinfônica de Londres - John Barbirolli - EMI Londres

O maior concerto inglês foi gravado de maneiras diferentes por Casals, Fournier, Tortelier e Rostropovich, sem contudo encontrar um intérprete definitivo em outras terras. Numa tarde quente de Agosto de 1965, uma garota de vinte anos, com jeito simples, sorriso maravilhoso e cabelos loiros até a cintura, subiu no palco do Kingsway Hall e se juntou a Sir John Barbirolli e a Orquestra Sinfônica de Londres para uma gravação para a EMI. A orquestra estava, por motivos internos, hostil em relação a jovens pretendentes. O regente estava empenhado em apoiar sua protegida estreante.
Depois de duas sessões tensas e desagradáveis, com metade da obra gravada, Jackie pediu licença e foi até a farmácia comprar remédios para dor de cabeça. Quando ela voltou, encontrou a estúdio cheio de curiosos. Havia circulado a notícia de que um prodígio estava acontecendo, e todos os músicos próximos a uma estação do Metrô correram para lá, na esperança de assistir o Finale. Poucas sessões de estúdio contaram com tamanha platéia. Em vez da maestria e possessividade com que Casals abordou essa obra, Du Pré inicia o concerto suave e refletidamente, ficando mais expansivo até que a paixão domine completamente, subindo e descendo em busca da catarse. Elgar infundira em seu concerto, escrito ao final da Primeira Guerra Mundial, um sentimento de pesar por um mundo destruído. Du Pré encontrou dimensões mais jovens - angústias de amor, medo da morte - e varreu tudo o que fora feito antes dela, nessa obra que dá ao solista apenas cinco compassos de descanso do início ao fim. Trata-se de uma performance musical definitiva - se é que jamais houve alguma. Rostropovich, ao ouvir essa gravação, excluiu a peça do seu repertório. A geração seguinte de violoncelistas fez dela seu modelo.
Du Pré veio a conhecer uma dupla celebridade - por mérito próprio e como esposa de Daniel Barenboim, com quem casou em Israel, logo após a Guerra dos Seis Dias. Eles chegaram a gravar o concerto juntos em Filadélfia em 1970, mas os pressentimentos de uma terrível doença - ela abandonou a carreira com esclerose múltipla em 1973 e morreu em 1987 - prejudicaram a segunda versão. O disco de 1965 (ao lado da inspiradora versão de Janet Baker de Sea Pictures) foi o momento mais alto de Jacqueline du Pré. Ao ouvir a gravação pela primeira vez, ela debulhou-se em lágrimas e disse: "Não foi nada disso o que eu quis dizer."

domingo, 14 de junho de 2009

Bernstein: Chichester Psalms (Salmos de Chichester) - John Bogart (alto) -Camerata Singers - Orquestra Filarmônica de NY - Leonard Bernstein

Com as exceções de Bruckner e Scriabin, Bernstein gravou praticamente todos os grandes sinfonistas clássicos contemporâneos, alguns deles duas vezes, bem como qualquer compositor americano digno de nota, vivo ou morto. Expansivo no pódio, saltando mais que qualquer outro maestro fora das Olimpíadas, os entusiasmos de Bernstein foram atenuados em disco pelo som excessivamente brilhante dos seus dias de CBS, ao passo que a sua segunda chegada, pela DG, foi quase sempre irregular em andamento e expressão, com as linhas argumentativas curvadas ao capricho da sua fantasia do momento. Em termos de clareza e precisão em gravação, Bernstein foi freqüentemente superado por Karajan, Haitink e Solti, seus rivais europeus.
Na música americana, contudo, ele foi indiscutivelmente um líder. Nenhum outro maestro fez mais para elucidar o tortuoso gênio de Charles Ives, a quem ele chamava de "Grandma Moses" da música*, os timbres vívidos de Aaron Copland, as paisagens de Norman Rockwell musicadas por Roy Harris, as consolações de Samuel Barber - acima de tudo, o suingue de George Gershwin, com quem tinha grande afinidade. A música sinfônica da qual foi autor sofreu o impacto do seu sucesso como regente e como compositor da Broadway. Os críticos depreciaram duas das suas três sinfonias, aceitando apenas "Age of Anxiety" como obra válida, e a Missa que ele escreveu para os Kennedy foi imediatamente desqualificada, com certa razão, por sua embaraçosa intemperança. Eclético e por vezes volúvel, Bernstein não conseguia manter a concentração necessária para sustentar uma obra sinfônica importante que não contasse com distrações de palco e exibicionismo.
São duas as excessões a essa regra: a platônica "Serenata para Violino e Orquestra", patrocinada por Isaac Stern, e os "Salmos de Chichester", encomendados por um pároco progressista de uma catedral inglesa. Bernstein assumiu o desafio com uma ingenuidade brincalhona. Ele compôs versos a partir de três salmos em hebraico bíblico, uma língua mais antiga que o cristianismo e jamais cantada em recintos consagrados anglicanos. Os textos extravasam exaltação lírica e amor a um só Deus - palavras que proporcionam júbilo quando cantadas ou ouvidas, com um delicioso solo para menino soprano na seção central, acompanhado por uma harpa davidiana e ritmos cruzados percussivos. Bernstein terminou o trabalho em Maio de 1965, fez a estréia na Inglaterra em Julho e levou-a ao estúdio de gravação assim que voltou aos EUA, de modo que os LPs estavam nas lojas antes do Natal. "Como é bom e agradável ver os irmãos vivendo juntos em harmonia", é a mensagem ecumênica nas entrelinhas.

*Anna Mary Moses (1860-1961), mais conhecida como "Grandma Moses" foi uma consagrada pintora americana, muito citada como exemplo de pessoa que fez sucesso em uma carreira iniciada tardiamente.

sábado, 13 de junho de 2009

Schubert: Duos para Piano - Benjamin Britten, Sviatoslav Richter - Decca - Aldenburgh, Igreja de Parish e Jubilee Hall, Junho de 1964, Junho de 1965.

Nos diálogos musicais , um instrumentista ou outro sempre tenta liderar, tocar mais forte, impor o ritmo. E quando um compositor famoso senta-se em um lado do piano, o protocolo exige que qualquer executante no outro lado dê a preferência. Não existe igualdade num duo. Esta gravação é uma rara exceção.
Em Junho de 1964, o pianista russo Sviatoslav Richter e sua esposa chegaram ao festival de Aldenburgh como convidados do fundador, Benjamin Britten. Mal havia se instalado no modesto hotel East Anglian, e Richter pediu para tocar para o público de Britten. O compositor encontrou-se com ele numa hora vaga no meio da manhã e, de repente, puxou um banquinho e sentou-se ao seu lado. Quando se manifestava em caráter privado, Britten considerava-o "o maior pianista de todos os tempos".
Ouça o mais atentamente que puder: você não será capaz de dizer qual dos dois toca o primeiro ou o segundo piano nas "Variações em Lá Bemol Maior", tais foram o respeito mútuo e a sensibilidade deles. Os críticos entortaram os pescoços para ver qual dos dois controlava os pedais, mas isso não importava, pois era um diálogo parnasiano no qual nenhum deles moderava seu ímpeto ou cedia ao outro, e sim, juntos, encontravam um plano elevado de discurso. De certa forma, era Hausmusik, uma recreação doméstica tocada por dois membros da família à luz de velas entre o jantar e a hora de dormir. Mas o fluxo e o refluxo das variações revelam sombras na mente do compositor, ansiedades de doença e morte que são ainda mais flagrantes na execução feita pela dupla no ano seguinte, da sombria "Fantasia em Fá menor", um dos últimos trabalhos do compositor. Os dois recitais foram transmitidos pela BBC e lançados pela Decca. Não há nada igual em disco.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Ives: Sinfonia nº4 -Orquestra Sinfônica Americana - Leopold Stokowski - CBS NY, Carnegie Hall, 25 de Abril de 1965.

Charles Ives foi um modelo de norte-americano. Milionário do ramo de segurança por esforço pessoal, ele escreveu música sinfônica que ia do amadorismo banal à intocável complexidade, e conservou a maior parte de seus trabalhos numa gaveta por décadas, com medo de rejeição. Depois de sua morte, em 1954, Leopold Stokowski, com seu olho para o espetacular, fez, em Houston, duas tentativas de estrear a massiva sinfonia nº4, que inclui coro, um conjunto de câmara separado e uma seção de percussão com sinos e gongos - e que inicia com o típico hino de igreja rural ("Watehnon, tell us of the nigth") ("Vigia, diga-nos como está a noite") que é cantado nos filmes B de faroeste, quando os bandidos estão para entrar na cidade. Integrar uma despojada simplicidade com a complexidade tonal das passagens seguintes, baseadas na sua espinhosa sonata para piano, é apenas um dos desafios desta peça frustrantemente difícil. Stokowski chegou a desistir duas vezes, desanimado com a escrita inadequada e as polirritmias contraditórias que jogavam a orquestra numa confusão cacofônica. Conseguir que todos tocassem juntos estava além da capacidade de um único homem. As coisas ainda pioraram. O segundo movimento caminha junto com os Pioneiros Peregrinos através de pântanos e florestas (e as discordâncias da segunda sonata de Ives) antes de encontrar a redenção nas comemorações do dia 4 de Julho e em algumas insinuações de jazz primitivo. A fuga é baseada em parte no quarteto para cordas de Ives, e o finale, elucidativamente, no hino religioso "Nearer My God to Thee" ("Mais perto de Deus").
Stokowski resolveu o problema empregando dois regentes auxiliares - David Katz e José Serebrier - que marcaram os contra-ritmos. De repente, tudo entrou nos eixos e Ives foi revelado como o criador da maior sinfonia americana, uma evocação errante, energética, não-discursiva e pouco escrupulosa do momento nacional. Para a regente, na casa dos oitenta anos, foi a apoteose do seu compromisso com a música moderna. A gravação foi feita ao vivo, por receio que a execução desta obra jamais fosse repetida, em razão do alto custo e da complexidade. Nenhuma gravação subseqüente capta o mesmo impacto causado pela descoberta de um continente musical.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Copland: Concerto para Clarinete - Bernstein: Prelude, Fugue and Riffs - Benny Goodman, Cordas da Orquestra Sinfônica da Columbia- Aaron Copland

Copland, em 1947, era famoso por "Primavera nos Apalaches", "El Salon México", e "Fanfarra para o homem comum". Tímido, feio, homossexual e socialista, este judeu do Brooklyn fez um tipo de música que reflete os EUA como uma terra simples, honesta, masculina e pastoral. O paradoxo foi ignorado por todos, menos o Senador McCarthy, que tinha Copland bem no alto da sua lista negra.
Com o dinheiro e o ânimo curtos, Copland aceitou 2.000 dólares do músico de Jazz Benny Goodman para compor um concerto para clarineta. Goodman esqueceu-se completamente do assunto até dois anos depois, quando o prazo expirou e outros solistas mostraram interesse. Goodman organizou às pressas uma estréia nacional pelo rádio em 6 de Novembro de 1950, regida por Fritz Reiner. Solista e regente divergiram, e as críticas foram mornas. A acolhida não melhorou, mesmo após uma série de apresentações. A virada veio quando Copland, regente iniciante e flexível, pediu para dirigir a gravação. Ele regeu o primeiro movimento na metade da velocidade, para acalmar os nervos de Goodman, e esta versão realmente lançou o concerto.
Um década depois, os dois tocaram a peça novamente, no que Goodman prometeu que seria uma reconsideração da abordagem original. Desta vez, ele se encaixou na linguagem de Copland, encontrando o suingue na estrutura clássica.
O concerto é aberto com uma frase da Nona Sinfonia de Mahler, que é desviada da desoladora tragédia para a suave elegia. O diálogo entre o solista e as cordas (mais harpa e piano) - sociável, levemente adstringente, calorosamente acolhedor - adquire uma pulsação brasileira, uma consciência de outras culturas americanas. A conclusão é otimista, um sorriso dentro de uma caixa de vidro. "Acho que vai fazer todo mundo chorar", disse Copland.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Prokofiev: Sonata para piano nº8 - Debussy: Estampes, Prelúdio - Scriabin: Sonata nº5 - Sviatoslav Richter - DG London

Richter foi a última das lendas russas a ser liberada para o Ocidente. Pianista culto de Odessa, de origem sueco-germânica, dotado de um timbre inimitável e um conhecimento musical enciclopédico, ele votou no pianista americano Van Cliburn quando foi membro do júri do Concurso Tchaikovsky em 1958, e teve que esperar mais dois anos até conseguir um passaporte.
Nervoso na América do Norte, cercado de vigias e assustado com a riqueza material que via, ele gravou em Chicago o segundo concerto de Brahms, com grande sucesso de vendas, mas que ele deplorava como "Um de meus piores discos...Eu perdi a conta de quantas vezes o ouvi, tentando achar alguma coisa boa." Presença rara em disco, suas melhores performances estavam confinadas às precárias gravações russas, até que, ao chegar em Londres, ele fez cinco apresentações públicas em dez dias, intercaladas com gravações - os dois concertos de Lizst, com a Orquestra Sinfônica de Londres e Kirill Kondrashin para a Philips, seguidos por um alegre recital solo de Debussy e Prokofiev para a DG. O impressionismo francês serviu para mostrar o fenomenal espectro de cores sonoras de Richter. Seu Prokofiev é tão intuitivo quanto notavelmente despretensioso, evitando qualquer demonstração de relacionamento pessoal com o compositor, cuja Sétima Sonata ele estreara durante os meses mais sombrios da guerra. A Oitava Sonata tinha ido para as mãos do seu rival Emil Gilels, e Richter considerava-a a mais rica do ciclo, "como uma árvore cujos galhos tem que suportar o peso de seus frutos". Esta execução é arrebatada, possessiva e emocionalmente desconectada, sendo uma descoberta tanto para o artista quanto para seus ouvintes, com harmonias que estão um tanto além da escala da cognição humana, um som como nenhum outro e um marco na história do piano. Richter disse que a sonata continha "uma vida humana completa, com todas as suas contradições e anomalias". A audição repetida confirma seu peso, bem como a genialidade de seu intérprete. "Eu não toco para uma audiência", costumava dizer Richter. "Eu toco para mim mesmo. Se obtenho alguma satisfação, então a audiência também ficará satisfeita."

sábado, 6 de junho de 2009

Bach: Concerto para Dois Violinos e Cordas - David e Igor Oistrakh - Royal Philharmonic Orchestra-Eugene Goossens DG Londres

David Oistraikh foi uma lenda entre os violinistas desde o dia em que ganhou o Concurso Rainha Elizabeth, em 1937. Durante quase duas décadas ele foi mantido atrás da cortina de ferro. Seu filho Igor foi um dos primeiros cidadãos soviéticos a ter permissão para viajar para o exterior, depois da morte de Stalin, tocando em Londres para os empresários Lilian e Victor Hochhauser e pavimentando o caminho para a vinda do pai. David Oistrakh começou a trabalhar com Hochhauser em 1954, indo a NY para a estréia no Carnegie Hall, marcado por Sol Hurok para Novembro de 1955. Menuhim e Isaac Stern prontamente o aclamaram por sua técnica perfeita e por sua profundidade algo desgastada. Heifetz se recusou a cumprimenta-lo, temendo (segundo ele) que com isso poderia sofrer perseguição machartista por suposta simpatia aos comunistas. A música de David Oistrakh nada tem de autopromoção. Ele preferia andamentos mais lentos que os dos virtuoses exibicionistas e tocava com um sorriso que ocultava o estresse de viver sob o terror. Sua permissão para viajar com o filho foi inicialmente negada, por receio de que um deles pudesse desertar (uma opção que, de fato, ele discutiu com Hochhauser). Quando a DG pagou às autoridades de Moscou uma alta quantia por uma dupla gravação, pai e filho encheram-se de alegria, viajando juntos por terras estrangeiras.
Numa sala mal vedada em Londres, no meio do inverno, as regras da colaboração musical e da execução barroca foram repentinamente suspensas, quando pai e filho se engajaram num diálogo que eles não podiam travar livremente em sua terra natal. Em vez de formal e bem ensaiada, a performance foi espontânea, contraditória e cheia de respeito mútuo. Não houve relutância de nenhum dos dois em interferir, mas a afeição recíproca, mais intensamente expressa no Largo, funde todas as diferenças de idade e opinião. Este disco é um modelo de comunicação musical, a ser tocado em momentos de aflição e isolamento. Ele nos diz que nenhum homem é uma ilha, que nós sempre podemos encontrar uma música que sensibilize aqueles que conhecemos e amamos e que o entendimento está à distância de apenas um golpe de arco de violino.


Download aqui:

http://rapidshare.com/files/86115455/David___Igor_Oystrack_-_Bach_Violin_Concertos.rar

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Bach: A Paixão Segundo São Mateus - Orquestra Philarmonia - Otto Klemperer - EMI, London Kingsway Hall

Quando Otto Klemperer gravou o grande oratório de Bach, estava com mais de setenta anos e ficava mais lento; de fato; seus andamentos eram tão lentos que os solistas tinham dificuldade de manter o fôlego. Numa pausa para o café, eles concordaram em que um deles tinha que falar. Dietrich Fischer-Diskeau se incumbiu da difícil tarefa.
"Dr. Klemperer", aventurou-se o respeitoso barítono.
"Ja, Fischer?"
"Dr. klemperer, eu tive um sonho esta noite, e nele Bach me agradeceu por cantar a Paixão, mas perguntou: "Por que tão lento?"
Klemperer fez uma careta, bateu na estante e continuou o ensaio, agora duas vezes mais devagar. Os cantores estavam quase sem oxigênio quando ele disparou:
"Fischer?"
"Sim, Dr. Klemperer?,"
"Eu também tive um sonho esta noite. E, no meu sonho, Bach agradeceu-me por reger a Paixão, mas perguntou: "Quem é esse tal de Fischer?"
Lenta ela ficou, mas nunca soou com segurança tão monumental, executada num estilo arcaico e imperioso que ecoa a versão de Mendelssohn quando este reavivou a reputação adormecida de Bach, em 1830. Dentro da grandiosa magnificência da narrativa, há uma flexibilidade sutil na pulsação de Klemperer, permitindo constantes surpresas e desafios na escultura das frases. Anatemizando da rapidez dos arautos da música antiga, a execução parece fiel, num sentido espiritual, às intenções do compositor.
Os solistas foram Elizabeth Scharzkopf, Christa Ludwig, Nicolai Gedda, Peter Pears, Walter Berry, Helen Watts, Geraint Evans e Ottakar Kraus, um time dos sonhos reunidos pelo produtor perfeccionista Walter Legge. A orquestra era a melhor de Londres, e algumas das passagens solo beiram o celestial. Fischer-Diskeau sempre se divertia contando a história de Klemperer; um dos solistas, porém, recusou-se a aceitar a imposição do maestro. Peter Pears, o companheiro de Britten, insistia em que os recitativos tinham que ser feitos num ritmo mais acelerado. Valendo-se da influência do amante, Pears introduziu suas alterações depois de aprovada a versão final pelo regente.

Bartók: Concerto para piano 1,2 e 3 - Géza Anda - Orquestra Sinfônica da Rádio de Berlim- Ferenc Fricsay - DG Berlim

A vida musical de Berlim ocidental no pós-guerra, foi reconstruída pelo húngaro Ferenc Fricsay, diretor musical da ópera de Berlim e da orquestra da rádio. Antes da chegada de Karajan, ele foi o principal regente da Deustche Gramophon, realizando emocionantes gravações dos réquiens de Dvorák e de Verdi, das óperas de Mozart e muito mais, especialmente música moderna. Em Bartók, de quem Fricsay foi aluno, a intensidade redobrou.
Géza Anda, outro graduado pela Academia Liszt, de Budapeste, tocou no Festival de Salzsburg todos os anos, de 1952 até sua morte em 1976, uma jornada mais longa do que qualquer outro pianista; entre seus alunos estava o futuro dirigente da DG Andreas Holschneider. Fricsay e Anda exerceram uma influência essencial no curso da gravação de música clássica. Juntos, em perfomances de obras de Bartók, eles foram imcomparáveis, e fizeram mais de 60 apresentações apenas do Concerto Nº 2 para Piano e Orquestra. Por mais que reverenciassem o compositor, Fricsay e Anda adotaram uma abordagem perigosamente flexível para a música, alargando os andamentos um do outro, um disparando na frente, enquanto o outro, medrosamente, se atrasava. Esta angularidade, húngara até os ossos, foi balanceada pela serena ternura nos movimentos lentos, lânguidos como uma noite de verão em Szeged. O contraste e o conflito mantêm a atenção, equilibrando-se tal como no gume de uma faca. No início do Concerto nº1, enquanto Anda expõe seu tema, Fricsay distrai os ouvidos do público com comentários orquestrais tipicamente bartokianos, permitindo assim que as selvagerias noturnas invadam nossa segurança. O Concerto nº2 parece ainda mais perigoso, e o nº3, embora classicamente agradável, por vezes deixa emergir medos e lugares escuros. Fora do alcance do público, segredos são compartilhados em um impenetrável dialeto de expatriados.
Mesmo conhecendo as obras (e um ao outro) intimamente, Fricsay e Anda precisaram de nove sessões completas para gravar os dois últimos concertos, lutando para chegar a soluções inatingíveis. Fricsay sabia que estava condenado pelo câncer e que estes seriam seus últimos trabalhos. Cada colaboração entre eles, no dizer de Anda, marcou "a renovação de uma relação de amizade que era quase a de dois irmãos". Os discos receberam uma batelada de prêmios e fixaram Bartók, que nunca foi o mais fácil dos compositores, permanentemente no coração do repertório de concerto.

http://rapidshare.com/files/58390624/Bart_k_Os_Tres_Concertos_para_piano_e_orquestra_Anda_Fricsay.rar