quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Debussy: Prelúdios - Pascal Rogé - Onyx - La-Chaux-de-Fonds, Suíça

Em meio ao colapso da indústria da gravação clássica, dois executivos discutiam sobre seu incerto futuro. Paul Moseley, homem de marketing da Decca, encontrava-se com Chris Craker, produtor de cerca de 400 discos, cujo pequeno selo, Black Box, tinha sido arrematado por uma grande empresa. E o que seria dos artistas? E todas aquelas estrelas em ascenção que foram amplamente promovidas pelos grandes selos e estavam agora, no meio da vida, jogadas num monte de sucata? Certamente um nome famoso deveria ter importância de alguma forma na nova economia.
Para seu empreendimento, chamado Onyx, Cracker e Moseley gravaram Victoria Mullova (ex-Philips), Barbara Bonney (ex-DG) e o quarteto Borodin (ex-EMI) em música que eles nunca tinham tocado antes. Mullova atacou Vivaldi com os cabelos esvoaçando sobre os rostos de uma selvagem orquestra com instrumentos de época. Bonney cantou Bernstein. O Borodin gravou um recital em comemoração ao seu sexagésimo aniversário. Mas a grande cartada foi Pascal Rogé, que, dispensado pela Decca, gravou os prelúdios de Debussy, que lhe haviam ocupado a mente desde os oito anos. Rogé era o arquetípico mestre de escola francesa, herdeiro da elegância de Cortot e da sutileza de Casadesus. Estilo foi o elemento de importância em seus prelúdios. Um fio de cabelo fora do lugar, um vestígio de sabor errado, e todo o efeito poderia ser arruinado. Cada prelúdio era um prato distinto, quente ou frio, sombrio ou "bien amusant".
Aliviado da expectativa de grandes vendas, Rogé tocou como quis, focado no texto e subtexto de um conjunto de peças que raramente é tocado na íntegra. Os Prelúdios, disse ele, foram escritos para o executante: "Não consigo imaginar o que um ouvinte pode desfrutar, comparado com o prazer voluptuoso de criar todos esses sons, perfumes, cores. Algumas vezes sinto-me culpado por experimentar todos esses prazeres em público. É quase indecente".
Do andamento "lento e grave" das danças délficas ao toque "animado" do vento nas planícies, o pianista preocupa-se apenas com a imagem e o estado de espírito. A "calma profunda" de uma catedral submersa é trazida de maneira extraordinária à mente; a homenagem satírica a Samuel Pickwick é tocada impassivelmente e, por isso mesmo, fica duas vezes mais cômica.
Este foi, por várias razões, um marco na história da gravação clássica, com o mérito musical de ter sido um indicador de como deveria ser a transmissão da música na era pós-gravação - um modelo para projetos modestos de grandes artistas, uma fina, porém resistente, corrente de continuidade. Antes que o disco fosse lançado, Chris Craker conseguiu um alto posto na Sony-BMG e o selo Onyx entrou para o sistema de distribuição das grandes gravadoras. Foi um vislumbre, ou, mais possivelmente, uma quimera de um novo começo.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Purcell:Dido e Enéas - Le concert d'astrée - Emmanuelle Haim - EMI / Virgin - Metz, Março de 2003.

A indústria fonográfica recusou-se a reconhecer as mulheres regentes. Poucas delas gravaram um ou dois discos, mas nenhuma teve contrato de gravação. Não parecia ter havido qualquer mudança sob esse aspecto no momento em que a indústria iniciava sua queda livre. Mas, do nada, surgiram duas mulheres, de formações diferentes, que quebraram os moldes antigos. Marin Aslop, uma aluna de Leonard Bernstein, gravou uma enxurrada de música americana para o selo Naxos. O sucesso foi tamanho que ela ganhou um ciclo de Brahms. Emmanuelle Haim, tecladista francesa, se encarregou de "Rodelinda", de Handel, em Glyndebourne, ganhando um contrato com a EMI Virgin.
Como cravista de William Christie, Haim havia chamado a atenção de Simon Rattle e Abbado. Ela formou seu próprio conjunto - o Concert d'Astrée e logo foi procurada como regente convidada por orquestras do primeiro time. Sem ficar refém de nenhuma doutrina "de época", ela escalou o elenco para a obra-prima de Purcell com grandes vozes - Susan Graham e Ian Bostridge - e convenceu o mestre do coro de Rattle em Berlim, Simon Halsey, a dirigir seu grupo vocal, usando instrumentos de época no fosso e com ela própria regendo, ao cravo.
Apesar do risco de dar espaço à exuberância dos grandes nomes, a execução, arrebatada e liricamente pura, foi uma colaboração entre iguais. Graham soa completamente à vontade no barroco e Bostridge irradia preciosidade através de sua virilidade muscular. Não há carência de competição de divas em disco, de Janet Baker, Maria Erwing, Jessie (acredite se quiser) Norman, Emma Kirkby e Kirsten Flagstad, mas nesta versão Graham é a primeira entre iguais, e esta é a sua maior virtude. A emoção do momento em que Dido está "deitada na terra" é avassaladora, por ser puramente aural, pois sua morte não é vista. Seria a última ocasião em que uma ópera gravada triunfaria sobre todas as encenações.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

igeti - Atmosferes, Aventures (música do filme 2001: Uma Odisséia no Espaço) Orquestra Filarmônica de Berlim - Jonathan Nott - Teldec - Berlim

O modernista húngaro György Ligeti ficou surpreso ao saber que sua música tinha encontrado uma audiência global na fantasia espacial de Stanley Kubrick. Ele foi assistir ao filme e ficou injuriado, com toda a justiça. Não apenas "Atmosfera" e outras peças haviam sido usadas sem sua permissão, mas também uma parte de "Aventuras" distorcida eletrônicamente. Ele abriu um processo, foi derrotado por Hollywood, e aconselhado por seus editores a aceitar um acordo no valor de 3.500 dólares - "uma quantia desprezível". Mais tarde disse: "Gostei do filme. Artísticamente, eu aceito a maneira como usaram minha música". Esta não é uma trilha qualquer, pois Kubrick alterara completamente a maneira como a música era aplicada no cinema - não mais como um reforço para a emoção, mas como uma dimensão própria. A música de Ligeti foi tocada sem uma palavra sequer de diálogo durante 16 dos 21 minutos finais do filme, uma exposição que outros compositores morreriam para ter.
Depois do acordo legal, o diretor continuou a usar a obra de Ligeti, copiosamente e com permissão, usando uma seção de "Lontano" em "O Iluminado" e de "Música Ricercata" em "De Olhos Bem Fechados". Ligeti foi à estréia alemã deste último, ao qual assistiu na companhia da viúva do diretor.
Por causa do litígio, nenhum CD com a trilha sonora de 2001 pôde ser lançado, e quando isso se tornou possível, nemhuma das gravações originais tinha o padrão necessário. Vincent Meyer, um meçenas suíço, permitiu que toda a música orquestral de Ligeti fosse gravada pela Sony Classical, com a Philharmonia, sob a regência de Esa-Pekka Salonen, o que Peter Gelb impediu. Ligeti, nesse meio-tempo se desentendeu com a orquestra e com Salonen. A Teldec ofereceu-lhe a melhor orquestra européia, mas isolou-o dos preparativos, a fim de impedir a interferência. A Filarmônica de Berlim tocou clinicamente e com atitude titubeante, sob a regência do britânico Jonathan Nott, quase sempre criando uma paisagem sonora original que deve atrair um ou outro cineasta. A música, "estática" na avaliação do compositor, remete às vezes à agitada música noturna que Bartók conjurou a partir da área rural que nunca dorme.

domingo, 2 de agosto de 2009

Shostakovich: Sinfonia nº 15 - Orquestra de Cleveland - Kurt Sanderling - Erato - Cleveland

A ambiguidade era parte da maneira de Shostakovich escrever suas sinfonias. Para os ouvidos oficiais, elas soavam como hinos de louvor ao sistema soviético, ao passo que, para as platéias russas, comunicavam um deslocamento solidário, uma tristeza compartilhada, um tipo de samizdat*. Cóigos e sinais ligados a uma agenda oculta se amplificavam em franca rebelião, em conversas mantidas pelo compositor, cujos registros foram preservados.
Apesar dos rumores largamente disseminados sobre sua vida dupla, os regentes ocidentais propositalmente tiraram conclusões errôneas sobre Shostakovich, a fim de alcançarem seus próprios objetivos. O poderoso Karajan afirmava que a sinfonia nº 10, claramente anti-Stalin, era a sinfonia que ele mais gostaria de ter escrito. Haitink interpretou o ciclo com a neutralidade de um país pequeno. Solti foi um misto de blefe e bazófia, Previn, fílmico; Ormandi, banal; e Bernstein, espetacular.
Depois da queda do comunismo a interpretação tornou-se excessiva. Buscavam-se significados ocultos em cada nota, ao passo que os acadêmicos brigavam em campos opostos. A ambiguidade, outrora um meio-segredo, perdeu seu sentido, na calor do cáustico debate público. Shostakovich tornou-se uma espécie de futebol para musicólogos frustados e ex-comunistas irredutíveis. O único veterano que sabia a verdade se recusava a falar - exceto para as orquestras, durante os ensaios. Kurt Sanderling, um refugiado de Hitler, trabalhara como segundo regente na Filarmônica de Leningrado. Seu chefe, Mravinsky, fez a estréia da maior parte das sinfonias, embora nunca tenha tido intimidade com o compositor. Sanderling, que regia os ensaios, fora um confidente muito próximo.
Diante das orquestras americanas, que nada sabiam do medo e das dificuldades da vida soviética, ele costumava explicar, cheio de paciência, como uma tuba retrata maldosamente a primeira missão de um espião do partido no estrangeiro, ou como um piccolo ilustra ironicamente a arrogância do poder.
Já com quase noventa anos, Sanderling abraçou o mais profundo enigma de Shostakovich: a sinfonia final, que começa com uma frase parodiada do Guilherme Tell, de Rossini, e termina, depois de muitas páginas quase em branco, em fragmentação mahleriana. Seria desespero? Desafio? Derrota? Sanderling apresentou uma paisagem de desolada beleza, a viagem de um moribundo através de sua vida, rica em autocitações e com a sensação de que tudo aquilo nunca tinha sido em vão. Não há nenhuma mensagem messiânica, nenhuma esperança vã oferecida aos que virão - apenas um tesouro feito de belezas musicais e mistérios, a matéria da vida. Cleveland abraçou o trabalho com o coração e tocou sem falsa inflexão. A sinfonia encontrou, finalmente, um significado além do significado.

sábado, 1 de agosto de 2009

Berlioz: Sinfonia Fantástica - Orquestra Sinfônica de Londres - Sir Colin Davis - LSO - Londres

Quando ficou claro que os grandes selos não se interessavam mais por música clássica, as orquestras ficaram desesperadas. Como as pessoas iriam ouvi-las novamente, ou diferenciá-las sem o oxigênio das gravações? O que seria de suas veneráveis reputações? Seria aquele o movimento final?
A Orquestra Sinfônica de Londres produziu, um tanto literalmente, a primeira solução para este problema. Em vez de implorar trabalho, elas gravaram concertos ao vivo com seu regente principal, pagando aos músicos nada mais que seu cachê normal, mas prometendo uma pequena participação nos lucros. Colin Davis, que regeu o primeiro ciclo de Berlioz em disco para a Philips, nos anos 70, estava revisitando seus triunfos iniciais com o benefício da reflexão madura. Seu ciclo continha muitas execuções memoráveis, entre elas uma Les Troyens magnificamente cantada, uma raridade fonográfica. Nenhuma obra, porém, concentrou mais a experiência do regente e a energia da orquestra do que a psicodelicamente colorida Sinfonia Fantástica, um mundo sonoro que intoxicara todos os grandes regentes, de Mahler e Toscanini aos dias de hoje (Bernstein, em sua gravação pela CBS, acrescentou uma palestra de improviso intitulada "Berlioz faz uma viagem"). A gravação de Davis de 1974 ficou no topo da lista dos críticos durante três décadas. Para eclipsar esta excelente interpretação, ele adicionou algum refinamento nas texturas e expandiu as dimensões aurais da fantasia, jogando com a direcionalidade dos efeitos especias. O diálogo distante dos pastores (solos de oboé e corne inglês) na abertura da "Cena do Campo" passa a ser visualizada em tela grande nesta versão. Os rufos e toques dos tímpanos surgem de repente, como surpresas aurais.
O cálculo da diferença espacial e o ruído da gravação ao vivo colocam esta gravação num lugar à parte das produções de estúdio. O produtor e o engenheiro de som foram os veteranos dos grandes selos James Mallinson e Tony Faulkner. O disco ficou entre os dez mais vendidos no Japão, e, mesmo tendo rendido pouco dinheiro para os músicos, estabeleceu o selo próprio como uma opção viável para as orquestras num mundo pós-gravação clássica.