domingo, 2 de agosto de 2009

Shostakovich: Sinfonia nº 15 - Orquestra de Cleveland - Kurt Sanderling - Erato - Cleveland

A ambiguidade era parte da maneira de Shostakovich escrever suas sinfonias. Para os ouvidos oficiais, elas soavam como hinos de louvor ao sistema soviético, ao passo que, para as platéias russas, comunicavam um deslocamento solidário, uma tristeza compartilhada, um tipo de samizdat*. Cóigos e sinais ligados a uma agenda oculta se amplificavam em franca rebelião, em conversas mantidas pelo compositor, cujos registros foram preservados.
Apesar dos rumores largamente disseminados sobre sua vida dupla, os regentes ocidentais propositalmente tiraram conclusões errôneas sobre Shostakovich, a fim de alcançarem seus próprios objetivos. O poderoso Karajan afirmava que a sinfonia nº 10, claramente anti-Stalin, era a sinfonia que ele mais gostaria de ter escrito. Haitink interpretou o ciclo com a neutralidade de um país pequeno. Solti foi um misto de blefe e bazófia, Previn, fílmico; Ormandi, banal; e Bernstein, espetacular.
Depois da queda do comunismo a interpretação tornou-se excessiva. Buscavam-se significados ocultos em cada nota, ao passo que os acadêmicos brigavam em campos opostos. A ambiguidade, outrora um meio-segredo, perdeu seu sentido, na calor do cáustico debate público. Shostakovich tornou-se uma espécie de futebol para musicólogos frustados e ex-comunistas irredutíveis. O único veterano que sabia a verdade se recusava a falar - exceto para as orquestras, durante os ensaios. Kurt Sanderling, um refugiado de Hitler, trabalhara como segundo regente na Filarmônica de Leningrado. Seu chefe, Mravinsky, fez a estréia da maior parte das sinfonias, embora nunca tenha tido intimidade com o compositor. Sanderling, que regia os ensaios, fora um confidente muito próximo.
Diante das orquestras americanas, que nada sabiam do medo e das dificuldades da vida soviética, ele costumava explicar, cheio de paciência, como uma tuba retrata maldosamente a primeira missão de um espião do partido no estrangeiro, ou como um piccolo ilustra ironicamente a arrogância do poder.
Já com quase noventa anos, Sanderling abraçou o mais profundo enigma de Shostakovich: a sinfonia final, que começa com uma frase parodiada do Guilherme Tell, de Rossini, e termina, depois de muitas páginas quase em branco, em fragmentação mahleriana. Seria desespero? Desafio? Derrota? Sanderling apresentou uma paisagem de desolada beleza, a viagem de um moribundo através de sua vida, rica em autocitações e com a sensação de que tudo aquilo nunca tinha sido em vão. Não há nenhuma mensagem messiânica, nenhuma esperança vã oferecida aos que virão - apenas um tesouro feito de belezas musicais e mistérios, a matéria da vida. Cleveland abraçou o trabalho com o coração e tocou sem falsa inflexão. A sinfonia encontrou, finalmente, um significado além do significado.

Nenhum comentário: